O vizinho

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Ele acordava cedo todos os dias. Às oito da manhã se punha de pé, entrava no chuveiro e começava a cantar. Seu repertório era vasto, cantava de Mozart a Tim Maia eloquentemente. Mas sua música preferida era Luiza, de Tom Jobim. Essa era a mais frequente em suas cantorias matinais. “Eu sei que embaixo dessa nave mora um coração”. Eu acordava com o seu canto e corrigia a letra mentalmente. Nave espacial era o seu chuveiro. 

O seu canto me acordava e eu irritada pensava como alguém pode acordar tão feliz. Como alguém pode se irritar tanto com a alegria. E lá ia embora o meu mau humor. Sua janela era a mais florida do condomínio, quiçá do mundo inteiro. A janela do vizinho é sempre a mais florida. A dele de fato era e não teria como ser diferente. 

Ele era de uma pureza incompreensível. Flamenguista apaixonado, mas não doente (não usava o futebol como catarse), não perdia uma partida. A cada gol ele gritava ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ. Era impossível não sorrir ao ouvir o seu grito de felicidade. Não tinha raiva, não tinha febre. Sua alegria era constante.

Eu sempre pensei que alegria, por definição, fosse efêmera e, no entanto, a do vizinho era constante. Me diz por favor que droga você toma, onde posso conseguir e a que preço, eu pensava, mas que preço pode ter a alegria, que é impagável? Preço alto de não conceber a tristeza. 

O vizinho estava sempre sozinho. Talvez sua alegria fosse insuportável aos outros e ele fosse condenado à solidão. Isso era o que eu precisava acreditar, pequena e humana que sou. Mas ninguém está sozinho quando tem o flamengo.

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