Delação castigada

quarta-feira, 03 de junho de 2015

Sempre chutei a bola na direção que meu nariz apontava, razão pela qual fiz mais gols contra do que Pelé a favor

Nos meus tempos de menino... porque eu também já fui menino, embora meus netos achem que eu já nasci de cabelos brancos  e testa enrugada. Um dia, mostrei a um deles uma foto de quando eu era rapaz e tive o desprazer de ouvir o seguinte: “Ué, cadê o bigode?”. Quer dizer: ele acha que eu já vim ao mundo com bigode, carteira de motorista e título de eleitor. Só falta o atestado de óbito. Tive que explicar que não fui eu que passei a limpo o rascunho da Bíblia, e muito menos fui eu quem removeu a lama do Dilúvio. 

Mas retomemos a frase que ficou perdida lá em cima. Nos meus tempos de menino, dizia eu, a gente brincava. Hoje, as crianças não brincam, jogam. Essa geração, sim, é que já nasce com laptop na mão direita e celular na mão esquerda. Em todas as línguas do mundo, a palavra mãe começa com M ou coisa parecida, e é a primeira que o bebê pronuncia. Quer dizer, pronunciava, porque agora antes de qualquer outra vem download, depois, muito depois, é que percebem que, além de computador, têm mãe e pai. Aliás, nesse exato momento, pai e mãe estarão no whatsapp, enviando mensagens para os amigos.

Mas a garotada do meu tempo brincava. Onde eu morava, a brincadeira mais comum entre os meninos era a de cowboy. Saímos montados em nossos cavalos que, para os idiotas da obviedade, como diria Nélson Rodrigues, não passavam de reles cabos de vassoura.  Com eles percorríamos as pradarias, que os adultos tolamente até hoje chamam de morros de Olaria, e atravessávamos o Velho Oeste, impondo a lei e a justiça e abalando o coração das belas damas que embalavam suas bonecas à beira da estrada. 

Por muitos dias usei uma poderosíssima capa preta, que antes havia sido parte de um prosaico guarda-chuva.  Era Batman e Robin ao mesmo tempo, e me sentia totalmente poderoso! Até que a capa desapareceu e, por mais que eu perguntasse por ela a minha mãe, a única resposta que eu ouvia era “Sei lá de capa preta, menino!” Até hoje, estando ela no céu,  como tenho certeza de que está, guardo a impressão de que ela jogou fora aquela preciosidade que tanta inveja causava em meus amigos.

Também jogávamos bola, é claro, que para isso não faltavam terrenos baldios para meninos vadios. Éramos uma geração de craques e, quando uma bola batia na vidraça de alguém... Bem, não temos por que invejar os jogadores que atualmente disparam pelas laterais em direção ao gol adversário.  Eu, sem querer me citar como exemplo, fui um dos maiores fracassos daquela geração e talvez de toda a história do futebol brasileiro. Sempre chutei a bola na direção que meu nariz apontava, razão pela qual fiz mais gols contra do que Pelé a favor.

Mas, voltando a falar do Velho Oeste, devo admitir que, assim como víamos no cinema, nos dividíamos em quadrilhas, cada uma com seu líder e seus companheiros de sela e de tiroteios. Eu, modéstia à parte, sempre fiz parte do bando dos mocinhos. Mas havia os bandidos, isso é, os malfeitores do outro grupo. O triste dessa história verídica, pelo menos tão verídica quanto pode ser qualquer história lembrada muitos anos depois, é que também havia traidores. Nosso grupo foi surpreendido pelos inimigos em muitas cavalgadas e, apanhados de surpresa ... apanhávamos. Como era possível, se nos reuníamos  secretamente atrás  de um velho pé de goiaba, e se trocávamos de ruela a cada excursão? O único Judas de que tínhamos notícia era aquele que a gente via nos filmes da Semana Santa.

Mas eis que um dia o delator foi apanhado em falso e, justiceiros como éramos, demos-lhes um bons bofetões e talvez algum chute. Eu não, que eu sempre fui covarde, segundo uns; um banana, segundo outros, e um coração de passarinho, na opinião de minha mãe, opinião que, dentre todas, acho a mais confiável.

E, por incrível que pareça, o que me fez pensar nesse assunto foi o noticiário da TV, que atualmente mais parece o relato das atividades diárias de um bando de ladrões. É que, quando ouço falar em  “delação premiada”, e penso cá comigo: “No meu tempo de menino, éramos adeptos de delação castigada, pois cowboy que é cowboy perdoa tudo, menos a traição.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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