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A banalidade do mal
“Mas o mal está, respondeu Momo, que eles têm por certo que estão na luz” (Umberto Eco, in 'O pêndulo de Foucault')
Por uma questão de justiça, devemos admitir que uma coisa boa a política brasileira tem: é movimentada. Praticamente não se passa um dia sem um escândalo, no mínimo a descoberta de um laranja, a revelação de um desvio de verba, a inauguração (com cinco anos de atraso, mas, vá lá, não sejamos tão apressados) de uma obra superfaturada. Enfim, de tédio não morreremos: nossos governantes não deixarão que falte assunto no noticiário.
O capítulo dos laranjas é dos mais interessantes. De repente, aparece um pedreiro que mora num barraco à beira da estrada na longínqua cidade de Trembebé do Norte (embora nunca se tenha ouvido falar na existência de Trembebé no Sul ou em qualquer dos outros pontos cardeais). Pois bem, o tal pedreiro (vamos chamá-lo de João Brasileiro da Silva) é proprietário de cinco fazendas, um apartamento nos Jardins, em São Paulo, e outro na Barra da Tijuca, no Rio, além, de sócio em uma empresa de ônibus em Salvador.
A imprensa brasileira, ao invés de elogiar um homem tão desapegado dos bens materiais, ainda critica esse São Francisco de Assis nacional. Um chefe de família que, podendo morar em palacete, mora num barraco à beira da estrada! Mas eis que algum repórter inconveniente resolve entrevistar João Brasileiro da Silva e descobre que a mulher dele (na prática já viúva há muitos anos, dada a magreza doentia do marido), é faxineira na empresa do filho do senador Abdula Drão. Bingo! Puxando o fio da meada, descobre-se que todos os bens acima citados, e muitos outros que começam a jorrar pelas páginas dos jornais e revistas, de alguma maneira passaram pelas mãos do senador, antes de tornarem o pobre João um homem rico.
Chamado a se explicar, o senador Drão diz que está sendo vítima de uma conspiração política, mas que vai esclarecer tudo. Uma CPI é aberta, faz-se o barulho de praxe, mas logo o assunto cai no esquecimento, que já outro escândalo mais alto se alevanta, como diria Camões.
E a história se repete, de Brasília à câmara municipal da mais miserável cidadezinha do país. E nenhum desses respeitáveis senhores (e umas tantas senhoras igualmente respeitáveis) se sente culpado de coisa alguma. Não lhes passa pela cabeça que a roubalheira que encabeçam possa estar ligada ao dinheiro que falta para tanta coisa de que carecem os joões da silva Brasil afora. Pessoas morrem nas portas dos hospitais, crianças vagueiam perdidas, falta polícia nas ruas, sobram buracos nas estradas. A educação é ruim, o trânsito enlouquece, o tempo é perdido, a bala perdida sempre encontra alguém onde se alojar.
Esses homens que roubam a canetadas o dinheiro do povo de nada se sentem culpados e ficam sinceramente ofendidos se alguém os acusa. Diante de tanta injustiça, alguns se revoltam e choram. O comportamento deles lembra a conclusão a que chegou a Hanna Arendt sobre Adolf Eichmann, durante o julgamento do carrasco nazista em Jerusalém.
Eichmann, a serviço de Hitler, tinha sido o responsável pelo assassinato de milhões de pessoas. Anos depois do fim da guerra, foi capturado em Buenos Aires e levado a julgamento em Jerusalém. Em todos os seus depoimentos revelou-se um homem tranquilo, cordial, não raro divertido. Hanna Arendt, que acompanhou o julgamento como correspondente de um jornal americano, tirou do episódio uma conclusão espantosa: o mal nem sempre é consciente e cruel. Para muitas pessoas que o praticam, ele pode ser simplesmente banal. Algo corriqueiro, que a gente pratica com a inocência de quem brinca com as crianças no playground da praça.
Ela, judia, confessa que chegou a rir às gargalhas lendo passagens do depoimento de Eichmann. Na consciência dele não havia nenhum peso, nenhum remorso em seu coração. Leveza total, completa indiferença. As perversidades que cometera não eram, na avaliação de Arendt, resultado de uma cegueira ideológica, um preconceito extremado, um fanatismo religioso. Não. Nada disso. Em Eichmann estava o exemplo perfeito do que ela chamou de “banalidade do mal”. Para ele, ser mau era tão espontâneo e inocente quanto respirar.
Não estou com isso querendo comparar os políticos ou quem quer que seja com Eichmann. Mas o fato que também nós, que não temos altos cargos, mas somos igualmente cidadãos, muitas vezes nos comportamos como se agir errado fosse a coisa mais natural e certa do mundo.
A “banalidade do mal” não nasceu nem morreu com o nazismo, também não fixou residência exclusiva nos gabinetes dos poderosos. Infelizmente ela está perto de nós, às vezes em nós mesmos.
Mas algumas pessoas exageram!
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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