Acreditem se quiserem

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Nomes fictícios, já se vê, que eu não estou aqui para arruinar a reputação de ninguém. Eu vou contar, mas nem peço que vocês acreditem. A verdade é que às vezes a verdade é mais inacreditável que a mentira. E o que essa senhora me contou, francamente... bem, ela não tinha por que mentir, embora tantas vezes a gente minta sem ter por quê.

Eis que ela, jovem e linda, abalou o coração do rapaz conquistador. Veio o casamento, vieram os filhos, como soe acontecer. Até que o rapaz, conquistador, eu já disse, conquistou outra e com a outra foi morar.

A moça reclamou, chorou, gritou, de nada adiantou. Lá se foi o marido, deixando-a com duas filhas, um apartamento e uma pensão que, para falar a verdade, não era nada desprezível, eis que o rapaz, além de conquistador, era rico.

Mas são incertos os bens deste mundo, conforme têm afirmado religiosos, poetas e filósofos de todos os tempos. Tanto é assim que o rapaz ficou pobre. Herdou a firma do pai, a firma faliu, ou mais provavelmente o herdeiro faliu a firma. Dizem que as grandes empresas são assim: o pai constrói, o filho usufrui e o neto destrói. Esse nem esperou a terceira geração, antecipou-se a ela e ele mesmo arruinou os negócios paternos.

Enquanto o velho administrou o dinheiro, e isso levou mais quarenta anos, o filho viveu com a segunda mulher. Manteve com a anterior um relacionamento distante, embora constante, porque, afinal, juntos tinham contribuído com duas crianças para o aumento da população brasileira.

Falecido o fundador, o sucessor tratou logo de afundar o negócio. Os compradores deram para desaparecer e os credores a aparecer com irritante frequência. A essa altura da narrativa, é bom darmos nomes aos personagens, para a história não ficar muito confusa. Nomes fictícios, já se vê, que eu não estou aqui para arruinar a reputação de ninguém. Digamos que o nosso herói se chame Francisco, e a primeira e a segunda esposa, Mariana e Julieta, respectivamente.

Mariana e Julieta mal se conheciam, não haviam trocado nesses quarenta anos mais do que um “como vai” entredentes. Qual não foi, portanto, a surpresa de Mariana ao atender o telefone e ouvir do outro lado a voz poucas vezes ouvida, mas nunca esquecida, de Julieta.

— Só por ela me telefonar eu já estava surpresa. Mas logo pensei que Francisco tivesse piorado, há anos a saúde dele vinha decaindo e a cabeça não andava muito melhor.
Empresário falido e orgulhoso demais para procurar emprego, Francisco vivia agora do que restara da riqueza dos bons tempos. Exagerava no uísque primeiro, depois no vinho barato, por fim bebia qualquer coisa que lhe aparecesse pela frente. Em resumo: estava um traste, ficava o dia inteiro tomando seu traguito, vendo televisão e perturbando a empregada, enquanto tiveram empregada, e depois a própria consorte, que, a essas alturas, já se considerava com azar.

— Só mesmo para anunciar desgraça é que aquela megera me telefonava. Uma vez para dizer que nosso sogro falecera (ou seja: quem manda agora é o meu marido), outra vez para dizer que Francisco estava cheio de títulos protestados (ou seja: não venha nos pedir dinheiro), outra vez para dizer que tinham mudado para um apartamento menor (ou seja: não mande mais seus netos virem se encostar na minha casa nos fins de semana).

Fiz cara de espanto, o que animou Mariana a continuar a narrativa:

— Você nem vai acreditar. Ela simplesmente queria me devolver o Francisco! Quarenta anos depois e milhões de reais a menos, ela me informava que não queria mais ficar com ele!

Aí meu espanto foi verídico. Mariana reproduz o telefonema de Julieta:

— Escuta só, Mariana. O Francisco está insuportável. Toda terça-feira recebo umas amigas para um chá, e ele fica passando pela sala de pijama. De pijama, dá pra acreditar?! Um constrangimento. Se eu saio, me telefona sem parar.  De noite me acorda com uma tosse de defunto. Sei lá se defunto tosse! O que eu sei é que não dá mais. Então, vou mandar ele pro teu apartamento, arruma um cantinho aí pra ele. Não esquece que ele é o pai de teus filhos!

— E você aceitou Francisco de volta? — pergunto eu, incrédulo.

— Como aquela chantagista disse, é o pai de meus filhos, não é? Fiquei com pena, concordei que ele viesse passar o inverno, que é quando a saúde dele piora. Já tem três anos, três invernos vieram e se foram e Francisco arrastando chinelo pela casa, cumprimentando minhas visitas. De pijama! E a tosse, vou te dizer uma coisa, parece mesmo tosse de defunto.

Essa é a incrível história de uma mercadoria devolvida quarenta anos depois de adquirida, e devolvida por quem a havia levado em bom estado e agora a trazia de volta bastante avariada.

A conversa com Mariana me fez lembrar de uma frase que muito ouvi de uma amiga dada a citar provérbios:  quem comeu a carne que roa os ossos!

Boa Mariana, que pouca carne tendo comido, rói agora um osso duro de roer!

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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