Colunas
Quem é vivo sempre aparece
Não chego a desejar que em nossa cidade apareçam mulas sem cabeça, lobisomens ou fantasmas da ópera
Quem é vivo sempre aparece, diz o ditado. E não falta quem acredite que quem é morto também aparece. De fato, ninguém some completamente. Para alguns em espírito, para outros em carne e osso, para a maioria de nós em forma de saudade e pranto, todos os que se foram voltam para nos visitar de vez em quando.
Se assim é, não há por que estranhar o retorno de um cronista, sobretudo se ele ainda está vivo, como creio ser o meu caso no momento. E estar vivo não é a minha única desculpa para voltar a escrever. Um amigo me garantiu que, uma vez que se tenha amado alguém um dia, nunca se poderá dizer que não o ama mais. É como o vício do cigarro, dizia ele, você pode parar de fumar radicalmente, mas nunca deixará de ser um fumante, e estará sempre sujeito a uma recaída.
Eu, que nunca fumei e que por toda a vida amei a mesma pessoa, não posso confirmar o que ele diz, mas também não ouso discordar dele, que já passou pelas duas experiências e até hoje vive assustado com ambas. Talvez, no entanto, o mesmo aconteça com quem adquire o hábito (ou o vício) de escrever. Assim como é arriscado para quem amou rever a ex-amada, ou para o ex-fumante sentir o cheiro do tabaco, é difícil para um escritor, ainda que mero diletante, ver as coisas acontecerem e não pensar nelas em forma de letras e sinais, de palavras e parágrafos.
E quanto mais se escreve, mais vontade de escrever se tem. Não porque se fique satisfeito, mas, ao contrário, porque a insatisfação nos leva a tentar de novo, na esperança de fazer melhor da próxima vez. O texto concluído é quase sempre uma frustração para o autor. Autran Dourado declarou que se conseguisse fazer um bom livro, pararia de escrever. Por isso não me chateio se alguém não gosta do que escrevi: eu fui o primeiro a não gostar.
E apesar disso, ou por isso mesmo, não resisti à tentação de, tanto tempo depois de tê-la fechado, reabrir esta portinha, como um modesto ourives que, saudoso de seus falsos brilhantes, voltasse a fabricar bijuterias. Tenho desde já dois leitores garantidos, a saber, eu e minha mulher, que a isso está obrigada por juramento feito no altar e papel assinado em cartório. Vocês sabem a que me refiro: na alegria e na dor, na saúde e na doença, etc., etc. Bem, pelo menos eu entendo que esse juramento a obriga a ler o que escrevo e, já que ela não reclama, fica sendo a minha primeira (e espero que não única) leitora.
No mais, conto com a benevolência de vocês e com muitos acontecimentos que os atraiam para o jornal e, por tabela ou por descuido, para este cantinho de página. Conhecendo vocês como conheço desde outros carnavais, sei de suas preferências pelos crimes violentos, os escândalos sociais, as atividades dos políticos e outros desastres naturais. Talvez a má redação da frase anterior dê a impressão de que incluo as atividades políticas dentre os desastres naturais. Ora, não me interpretem mal. As atividades políticas não são naturais.
Sim, nada como um fato bem chocante para despertar no público a vontade de ler. Houve uma época em que, na Baixada Fluminense, uma mula sem cabeça começou a assustar a população. Os jornais publicavam fotos do estranho animal, completo do pescoço ao rabo, mas inteiramente desprovido daquela parte com que as mulas veem o mundo, ouvem os barulhos, se alimentam e, quem sabe, até pensam, ou seja: a cabeça.
Pois, creiam vocês, nunca na história daquela região se vendeu tanto jornal. Cartas chegavam às redações com as mais autênticas declarações de gente que tinha visto a tal mula. Um pedreiro de Duque de Caxias, cidade tão inusitada que, segundo se diz, nela as galinhas ciscam para a frente, esse pedreiro declarou ter inclusive montado no bicho, só tendo caído quando a decapitada, justamente por lhe faltar a cabeça, deu com o resto do corpo num barranco.
É coisa de somenos que depois um repórter tenha admitido que decapitara a mula original com uma tesoura. "Vi a foto da bichinha e primeiro pensei em cortar-lhe o rabo, mas depois concluí que ela faria mais sucesso sem a cabeça”. O fato concreto e importante é que a mula estourou nas bancas e, graças a ela, seções dos jornais que nunca tinham sido contempladas com o olhar dos leitores acabaram servindo de refrigério para as emoções causadas por aquele quadrúpede acéfalo.
Não chego a desejar que em nossa cidade apareçam mulas sem cabeça, lobisomens ou fantasmas da ópera. Mas que coisas assim interessantes aconteçam e, depois de passar por elas, vocês deem uma paradinha nesta coluna. É a esperança que meus textos alimentam de ter mais que os dois leitores já citados.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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