Fim de Caso

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Pegou o Fiat 82 e se mandou, ele que fosse de ônibus. Ou a pé. Tomara que venha a pé e seja atropelado.

A moça brigou com o namorado nas furnas do Catete, onde tinham ido tomar caldo de cana e ver a cachoeira do Véu das Noivas que, por sinal, estava seca. Contou-lhe muitos desaforos, chamou-o de todos os nomes feios de que pode se lembrar na hora. Namoravam há mais de três anos, namoro moderno desde o primeiro dia, posto que começou numa inocente festa de batizado e na mesma noite se consumou num motel da estrada Friburgo-Teresópolis. 

O rapaz era bem pobre, mas ela, que tinha até um Fiat 82, não se importava com isso e, sem constrangimento, dormia com ele na meia-água em que ele morava em Conselheiro, sendo que o verbo dormir é aí um eufemismo. Quantas vezes ele jurou amor, e quantas vezes planejaram casamento, só contando as areias de todas as praias brasileiras para se saber. 

De repente, sem mais porquê, ele vem com a conversa de "dar um tempo”, "quem sabe no futuro”. Até em "a gente se conhecer melhor” o miserável falou. Faltava conhecer o quê? "Você me conhece de todas as maneiras, só não me viu ainda morta”, disparou, e era verdade. Pegou o Fiat 82 e se mandou, ele que fosse de ônibus. Ou a pé. Tomara que venha a pé e seja atropelado.

No Prado, já mais calminha, jurou para si mesma que nunca mais olharia para aquele desgraçado, aliás nunca mais falaria o nome dele: Zé Luiz. Parou na entrada de Duas Pedras, apanhou o caderninho que estava no porta-luvas e riscou o número do celular dele (Metido: não tem onde cair morto, mas anda de celular pendurado na orelha). Um pouquinho mais difícil era apagar o número da cabeça, sabia aquela desgraça de cor há muito tempo.

Nunca mais queria saber dele. O ódio era tanto que quase estacionou no pátio do Hospital Raul Sertã para pedir um calmante. Resolveu não dar tanta confiança para aquele mequetrefe, um pé rapado e, pra falar a verdade, muito ruim de cama. Não que tivesse conhecido outro, mas podia jurar que Zé Luiz era um amante muito frouxo. Bom para se encher de cerveja, que ela pagava, e depois dormir e roncar.

Furou o sinal quando entrou na Galdino do Valle Filho, felizmente não tinha carro atravessando, mas um pedestre fez um gesto obsceno, que ela respondeu com outro pior ainda. Era católica, mas ao passar pela Igreja Luterana fez o sinal da cruz e jurou que nunca mais queria saber de namorar lixo, daqui para frente só se aparecer um homem de verdade.

Canalha, patife, bandido, corno, de tudo isso ela o chamou enquanto atravessava o Paissandu, embora o último adjetivo não fizesse sentido. À medida que se aproximava de Olaria, a raiva diminuía. No Cônego, já estava em paz consigo mesma. Ele não presta mesmo. Não ia perder tempo por causa de um homem que nem emprego fixo tinha e, além de tudo, era bem feio, um nariz que parecia tromba de elefante. Sim, não ia dar a ele o prazer de achar que ela estava sofrendo. Nunca mais procuraria por ele, e mesmo que ele a procurasse, ia dispensar numa boa. 

Tinha chorado um pouco, ainda restavam umas lágrimas escorrendo pelas bochechas. Mas estava resolvida: nunca mais queria saber daquela porcaria de homem. Chegou à Cascatinha, onde morava com os pais.

Mas antes de ir para casa, parou num orelhão e discou o número do celular de Zé Luiz.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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