Colunas
Só um Homem
Dos bichos que se movem sobre este planeta, o homem é o mais estranho, o mais frágil e o mais completo
Outro dia fui à nossa honrada Câmara Municipal, e tendo visto por lá um funcionário da casa, perguntei se ele poderia entregar uma correspondência aos vereadores. Provavelmente sentindo-se rebaixado pela pergunta, ele disse que eu mesmo deveria levar os envelopes aos gabinetes de Suas Excelências, e o disse dessa forma assaz gentil e formosa: "O senhor é que tem que ir lá. Se o senhor não for, quem é que vai? Eu?” Humildemente agradeci a gentileza e subi as escadas. No corredor, uma senhora estava encostada na parede. Perguntei-lhe se ela sabia onde ficavam os gabinetes dos vereadores. A cara amarrada e o ‘não’ que ela atirou em cima de mim me lembraram estes versos de Bilac: "O não que desengana, o nunca que alucina”.
Tudo bem, todos nós temos aquele dia em que acordamos de mal com o mundo e detestando qualquer um que encontremos pela rua, inclusive gente que nunca antes tínhamos vistos. Dias em que cortamos volta até dos melhores amigos, para não ter que cumprimentá-los, fazer-lhes um aceno ou dar-lhe um magro "olá!”.
No entanto, tem gente que acorda todos os dias (se é que dormiu) com problemas terríveis, que certamente esmagariam a maioria de nós e, no entanto, saem para a rua com o maior dos sorrisos. Tive uma demonstração disso quando assisti a um vídeo sobre pessoas com severas limitações físicas. Elas se reuniram para contar casos e, embora cada história fosse mais triste que a outra, as entrevistas foram dadas entre risos e gargalhadas, ainda que não sem emoção.
Um homem, que havia perdido as duas pernas num acidente, disse ter sido pai recentemente e que uma conhecida, ao ver o bebê no berçário, comentou espantada: "Ele tem as duas perninhas!”. E o pai narrou esse episódio, divertindo-se com a tolice daquela mulher, que parecia supor que ser amputado fosse hereditário.
Um outro explicou que, quando se vai auxiliar um cego, não se deve pegá-lo pelo braço. Ao contrário, é o cego que se apoia em quem o conduz. Pois este estava parado na calçada, quando alguém o segurou pelo braço para ajudá-lo a atravessar a rua e, por mais que ele insistisse, o outro se mantinha naquela posição. Por fim, cansado de inutilmente tentar desfazer tal arranjo, deixou-se levar por aquela mão amiga. Pelo menos, pensou, é alguém que enxerga. De fato, chegou são e salvo ao destino, apesar de algumas buzinadas e alguns gritos. Foi quando ouviu o barulho de uma bengala se abrindo. Em seguida, a voz de seu acompanhante, agradecendo por ter sido auxiliado na perigosa travessia. Era um cego guiando outro cego, cada um deles acreditando estar nas mãos de alguém que sabia o que estava fazendo!
A terceira entrevistada sofria do que suponho ser esclerose múltipla bilateral. Seus membros movimentavam-se desordenadamente. Pernas e braços mexiam-se por conta própria, e só os olhos e a boca pareciam obedecer às ordens do cérebro. Apesar disso, ela costumava sair para festas e, no trajeto, passava por um hospital. Até o dia em que, por iniciativa própria, um motorista que não a conhecia parou o ônibus ali em frente e, com voz piedosa, perguntou: "A senhora vai para o hospital?” Ela então deu sinal para que ele seguisse em frente, e fez todos rirem com sua resposta: "Não, eu vou é pra gandaia!”
Assim é a espécie humana, capaz de grandeza e baixarias, capaz de se mortificar por causa de pequenos sofrimentos e, às vezes, diante das maiores provações, revelar uma resistência inigualável. Dos bichos que se movem sobre este planeta, o homem é o mais estranho, o mais frágil e o mais completo. No belo livro Terra dos Homens, Saint-Exupéry conta a história de um companheiro do Correio Aéreo, Guillaumet, que há 50 horas havia caído nos Andes, durante o inverno. "O Andes, no inverno, não devolvem os homens”, dizia-se. Quando todos já o davam como morto, Guillaumet aparece, saído das profundezas do gelo, após a mais terrível das caminhadas.
É Exupéry quem nos conta: "...sangrando, os pés, os joelhos, as mãos, sob quarenta graus de frio. Exaurido pouco a pouco do seu sangue, de suas forças, de sua razão, avança com uma teimosia de formiga (...) sem se permitir nenhum repouso, porque não poderia se erguer, depois, de seu leito de neve”.
E a primeira frase de Guillaumet para explicar o que havia feito para sobreviver, dá a medida de sua grandeza, grandeza que todo ser humano há de ter, ainda que escondida no mais fundo de si mesmo: "O que eu fiz, palavra que nenhum bicho, só um homem, era capaz de fazer”.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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