Dura Lex

quarta-feira, 11 de março de 2015

Tinha ela praticado o abominável crime de roubar um pão
Soube pela imprensa que uma senhora de oitenta e tantos anos, que nem geladeira tem em casa, foi presa por não pagar a pensão alimentícia dos netos. Sei que de vez em quando um pai pega uns dias de cadeia pelo mesmo motivo, mas me surpreendeu ouvir que também avós podem ser obrigados a sustentar seus descendentes. Ex-marido é coisa antiga, mas agora inventaram o ex-pai, que vem a ser o sujeito que se julga irresponsável por seus ex-filhos. Filhos são eternos, mas às vezes o amor paterno não dura mais que alguns anos. E, no caso presente, sobrou para a pobre avó pobre.

Que uma mulher com essa idade vá presa já é de se admirar, mais admirável ainda é o motivo. Mas, se assim é a lei, cumpra-se, porque  no Brasil não tem esse negócio de lei que pega e lei que não pega, de lei que pune os pobres e com os mesmos argumentos absolve os ricos, lei que  prende  se o infeliz não tiver advogado, e lei que liberta se o sujeito puder pagar quem o defenda. E, quanto mais caro o defensor, menor a possibilidade de o acusado dar as caras em algum presídio.

No entanto, vi num mesmo telejornal duas notícias separadas que, se estivessem juntas, podiam dar a ideia errada de que em nosso país não se pune o crime, mas sim a falta de grana para defender-se. Foi o seguinte: uma  mulher estava presa na cadeia e trazia presa no ventre uma criança prestes a libertar-se. Tinha ela praticado o abominável crime de roubar um pão, ou talvez coisa ainda mais horripilante, quem sabe um pacote de biscoito ou um pote de shampoo.

O fato é que ela devia ser levada ao fórum, e a polícia, não dispondo de viatura para transportá-la, e temendo sair sem mais nem menos com criminosa de tão alta periculosidade, teve a feliz ideia de algemá-la e sair puxando-a pela rua. Melhor dizendo, puxando-as, porque naturalmente a barriga volumosa da ré ia  junto, sacudindo-se pelas calçadas.

A outra notícia era sobre um aclamado cidadão de São Paulo que respondia  a tantos processos que, reunidos, formariam uma obra mais extensa do que os setenta e dois livros da Bíblia. Na verdade, a vida desse senhor é a um só tempo o Gênesis e o Apocalipse da velhacaria humana. Parece que ele só não roubou no Brasil, talvez por excesso de amor à pátria. No resto do planeta, está à espera dele a polícia de cento e dezoito países, nos quais, por medida de prudência, ele nunca pisará. 

Mas eis que essa figura impoluta, modelo de probidade, exemplo  de cidadão a ser seguido pelas novas gerações, pegou um ou dois dias de cadeia. Não que ele merecesse, mas tanto o atacou essa tal de imprensa livre que não houve como evitar que ele visse ao menos uma lua e um sol nascerem quadrados. Ele, que, com razão, se diz o maior ficha limpa do Brasil, pois todos os processos  em que era réu prescreveram antes de irem a julgamento.

Eis que ele saiu da cadeia no mesmo dia que a grávida grave. Porém, acompanhado de amigos, familiares e assessores que o conduziram sob aplausos ao palacete adquirido com longos anos de trabalho honesto. É como se constata em todos os nossos tribunais: Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex.

Mas  saibam que não é em todo lugar que a justiça funciona tão bem. Eu mesmo acompanhei o seguinte caso ocorrido num país distante, chamado Nachi. Um homem foi acusado de espancar o filho doente e indefeso. Um bom tempo depois de a acusação ter sido levada à justiça, testemunhas foram chamadas a depor.  

Na primeira audiência, após horas de espera, todas foram dispensadas, porque "o doutor está em outro julgamento. Voltem daqui a três meses”. Na segunda vez, ficaram  até o anoitecer esperando Godot, mas, como na famosa peça de Becket, "Godot mandou avisar que não vem, voltem daqui a três meses”. Na terceira tentativa, "a doutora tirou licença de gravidez. Voltem daqui a três meses”. Finalmente, na quarta oportunidade, "O doutor está a serviço da Justiça Eleitoral. Voltem daqui a três meses”.

Bem, não posso contar o final da história, porque, passados três ou quatro anos, a testemunha que conheço nunca mais foi chamada. Mas, se a criança estava realmente sendo espancada, já deve ter morrido de tanto apanhar e agora só pode contar com a justiça dos céus. 

Dura lex sed lex, seu problema é ser pobrex.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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