Uma nova manhã

quarta-feira, 01 de abril de 2015

Sentou-se na poltrona,  emocionado feito menino que ganhasse no Natal o presente que sem esperança tanto havia pedido

Acordou dentro do mais fechado silêncio. Involuntariamente esbarrou em Laurinda e o contato com a mão dela fez com que sentisse um calafrio.  Por um momento pensou nas tantas coisas em que ela era realmente uma mulher fria. Afastou o pensamento inútil, acendeu o abajur, o quarto  agora iluminado por uma estranha luz roxa, diferente do rosa habitual. Embora fosse uma manhã como outras tantas (tantas outras!),  uma sombra espessa pairava sobre a cama. Laurinda estava com a cabeça ainda coberta pelo lençol, como fazia desde a primeira vez em que amanheceram juntos. Já se acostumara, tudo vira costume depois de quarenta anos de casado. 

A princípio, pensou que fosse timidez, achou até bonito aquele recato. Mas a mulher continuou pelos anos afora amanhecendo com a cabeça embrulhada feito uma múmia.  Quando perguntou que maluquice era aquela, ficou sabendo que era coisa de família, a mãe dormia assim, assim dormiam as tias e as irmãs. Acostumou-se. O cheiro de café na cozinha, o cheiro de alfazema nas roupas, a mania de chamá-lo de Seu Aurélio quando irritada - quase sempre-,  e de Lerinho quando - raramente-  de bom humor.

Visitavam os sogros, viam televisão. Aos sábados tiravam as roupas ao deitar, porque no dia seguinte não precisavam levantar cedo. Tocavam a vida, mas não tocavam na vida. Outros assuntos! Por isso, nunca se perguntara se gostava do peixe que ela fazia uma vez por semana, nunca se perguntara se amava aquela pessoa com que dividia a casa escura e os dias brancos de sua existência. 

Conheceram-se no Instituto Sabedoria do Brasil, onde dava umas aulinhas de matemática, enquanto se preparava para o vestibular. Queria fazer engenharia e, como tivesse alguma inclinação para contas, ainda estudante foi contratado para meter na cabeça da molecada por que razão obscura dois e dois são quatro. O Sabedoria do Brasil, com esse nome pretensioso, mal ou bem o sustentou pelo resto da vida.

No guichê, Laurinda Maia de Oliveira todo dia cinco lhe entregava meia dúzia de notas magricelas. Nem realmente feia, nem especialmente bonita. Boa moça, boa família. Conversou, namorou, casou. Da pensão na qual passara sozinho o que poderia ter sido os melhores anos de sua juventude, mudou-se para o quarto-e-sala onde começaram a vida a dois. Desde que morrera a tia Dora, que o criara, não sabia o que era viver com outra pessoa. Nas primeiras noites, a mulher embrulhada nos lençóis, que bicho mais estanho!  Mas se acostumou. Vieram os filhos, um foi viver o sonho em Miami e,  em vez de mandar dólares, pedia reais. Era o Brasil subsidiando o american way of life.  O outro virou ator, andava sabe-se lá onde, fazendo um tal Teatro do Povo, que, fosse o que fosse, não dava dinheiro. Com mais de trinta anos, vivia da mesada paterna. Era o Brasil  subsidiando o amor à arte.

Ficaram os dois. O mesmo cheiro de café e de alfazema. E os sábados, podendo-se dormir até mais tarde no dia seguinte. Porém sábados com emoção cada vez menor, porque o coração de Laurinda ultimamente vinha falhando de vez em quando, tal qual o motor do 2001 que eles tinham na garagem, e porque os médicos haviam prescrito muitos remédios e poucos esforços. Puxou a ponta do lençol, a mulher quieta como se estivesse em outro mundo. Pulou da cama e foi para a sala, o dia começava a clarear, parecia que a própria vida clareava lá fora.  Até sentiu vontade de assobiar, assobiava tão mal! Sentou-se na poltrona,  emocionado feito menino que ganhasse no Natal o presente que sem esperança tanto havia pedido.

Voltou ao quarto, Laurinda na mesma posição, indiferente à presença do marido e à luz que agora ondulava pelas persianas. Nunca se tornara engenheiro, o diabo que carregue todos os engenheiros do Brasil e  do mundo! Mas era dono do seu nariz. Não que fosse homem de  desrespeitar autoridade alguma, por mais reles que fosse, mas, se quisesse, podia dar um  chute no traseiro do diretor do Sabedoria do Brasil. Era um cidadão livre, tinha até sua aposentadoriazinha, pequena, mas certa. 

Estava sentindo um calorzinho gostoso no coração. Era o sol da manhã, uma nova manhã.

Pegou o telefone e começou a avisar aos parentes e amigos que Laurinda havia morrido. Estava viúvo. Viúvo! Era a primeira grande mudança em sua vida nos últimos quarenta anos!

Conclusão: "A morte - como ensinava Goethe - é, de certo modo, uma impossibilidade que subitamente se torna realidade" (Paulo de Carvalho-Neto)

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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