Sobre a civilização que ama coisas e compra pessoas

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Chegamos a este estágio na civilização humana e as consequências são bastante desagradáveis porque muitos princípios precisam ser negados para que cheguemos a viver tal prática.

Quando nos espantamos com as estatísticas sobre o suicídio de crianças e ficamos atônitos com a notícia de que um professor foi assassinado porque atribuiu uma nota baixa a um aluno, cuja prova foi desastrosa, pensamos no final dos tempos. Mas, há muita coisa escondida que aparece pouco na mídia, como os registros de violência contra crianças no Brasil, estimados em 500.000 por ano. Estas são as registradas. As desconhecidas não habitam os compêndios que ocupam os espaços das estantes de arquivos oficiais. Pais matam filhos, haja vista o caso do menino Bernardo e da mãe inglesa que matou um filho recém-nascido e, em seguida, em casa, o outro mais velho, por causa de uma depressão. 

Fiquei surpreso com uma expressão que encontrei, acerca das crianças no século 19, ao fazer uma pesquisa sobre educação infantil. Afirmava o autor que "as crianças eram tidas como agradáveis animais de companhia”. De fato, se analisarmos pinturas da época, as famílias eram retratadas com todos juntos, além dos animais, das crianças e das peças da casa. Hoje, certamente, os desenhos e pinturas seriam diferentes. Mas, àquela época, havia  convívio. Um amigo chamou minha atenção certa vez para o fato de que a Revolução Industrial aniquilou a família que, como núcleo de educação e até de primeiras letras, deixou de existir. As crianças foram bem cedo para a creche, hoje creche-berçário, os pais estão fora, trabalhando, e os idosos foram levados para os asilos. O núcleo familiar está vazio. Com a educação em tempo integral, sobretudo na área pública e com as inúmeras atividades que a classe média oferece aos seus filhos, as escolas passaram a arcar com uma série de responsabilidades que, antes, eram divididas com as famílias.

Um cronista do Rio de Janeiro, na década de oitenta do século passado, concluía seu texto sobre a teoria neomalthusiana, descrevendo um diálogo entre os pais que, em linhas gerais, poderia ser assim reportado: "neste ano trocaremos o carro com o dinheiro que não será gasto com o nascimento do filho e, no próximo ano, iremos à Europa com a verba destinada ao pré-natal da filha que não nascerá”. São os valores de quem ama coisas. Já na época desta crônica ministrei aulas em que alertava os alunos para o surgimento, nos Estados Unidos, dos "dinks”. Em inglês, "duble income, no kids”. Na verdade, a decisão por um casamento poderia ser simplificada pela expressão: "dobraremos o salário e não teremos crianças”. 

A humanidade só consegue caminhar dentro desta estrada sem afeto porque ama coisas. Ao lado disso, como pensa em comprar pessoas, convive diariamente com a depressão, a falta de motivação e o suicídio. No Brasil, a causa das mortes dos adolescentes tem em seu primeiro plano a violência, em segundo as drogas, em terceiro, o suicídio, em quarto o trânsito e em último lugar as doenças orgânicas. Pelo menos foi o que ouvi do falecido Dr. José Outeiral, num congresso de educação, em Estrela, Rio Grande do Sul, na década de noventa. Naquele estado, afirmava ele, o suicídio de adolescentes já ocupava o segundo lugar.

Jornais e demais noticiários voltam-se cada vez mais para as observações das taxas Selic e do PIB nacional. Os valores econômicos ocupam a maior parte das páginas dos diários, o marketing é vigoroso e a humanidade busca a sua própria felicidade preenchendo as lacunas afetivas com produtos comprados. As pessoas parecem estorvar. 

Diante disso, a ética passa a planos inferiores. Ninguém mais pensa, como aludia Kant, numa fala de Mário Cortela, que as pessoas deveriam orientar a própria vida de forma bem simples, em se tratando de ética "quando alguém pensar em fazer alguma coisa que não poderia ser relatada à própria mãe ou a um amigo íntimo, não deveria ser feita porque, com certeza, feriria a ética”.

Enfim, se quero, posso e devo, não haverá problema, sempre será ético. Havendo alguma negação entre estes três verbos, não pratique o ato pretendido, porque não será ético. Vale dizer que a falsa ética da atualidade, onde as pessoas pensam ter poder para fazer o que quiser, onde quiser e sem dar satisfações a quem quer que seja, senão a si mesmo e ao seu EU pensado como absoluto e autoritário, só consegue persistir onde o lema central seja a repetição do título deste artigo: "amamos coisas e compramos pessoas”.


Professor Hamilton Werneck é pedagogo, escritor e palestrante.

www.hamiltonwerneck.com.br


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Hamilton Werneck

Hamilton Werneck

Eis um homem que representa com exatidão o significado da palavra “mestre”. Pedagogo, palestrante e educador, Hamilton Werneck compartilha com os leitores de A VOZ DA SERRA, todas as quartas, sua vasta experiência com a Educação no Brasil.

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