Vida de cão

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Tem muita gente por aí querendo nascer bicho e não precisa nem ser destes felpudos, fofinhos ou de olhinhos grandes, tipo gato do Shrek, afinal o próprio conceito de animal doméstico já mudou ao longo do tempo. O que no passado era cachorro e gato, agora é tartaruga, calopsita, iguana, cobra, etc. A expressão cobras e lagartos nem faz mais sentido, afinal elas têm ração especial, terrários... O que falar dos ramsters que têm uma verdadeira Disneylândia para brincar...

O mundo PET só faz crescer. Lojas segmentadas se esparramam pelas ruas, e a impressão que dá é que há mais animais domésticos do que crianças no mundo, pois há por aí mais lojas especializadas em bicho do que infantis.

Os mimos para a bicharada já deixaram de ser razoáveis e estão se tornando sem noção, para usar uma expressão atual. Rações de cachorros e gatos alcançam R$ 14 até R$ 19 o quilo, o que dá pra comer bem, se passar antes por um açougue ou boutique de carne (está na moda agora). Se não comprar picanha, dá pra levar contra-filé pro au-au e ele vai se amarrar... O que aconteceu com a comida dos cachorros? O que aconteceu com os cachorros? Agora usam roupa de frio, botas, boné, brincam com osso de mentira e, se duvidar, não latem mais. Sofrem de depressão, estresse, fazem relaxamento e têm seu dia de Spa. 

Nossa perspectiva de consumo está criando bichos como bibelôs, que espelham tendências de consumo e que expressam, em alguns casos, muito mais que amor; alcançam, ao que parece, um comportamento espelhado de seus proprietários — ou, como alguns preferem se autointitular, pais. Segundo o Ibope, eram R$ 6 bilhões em 2012 o que se movimentava no mercado de animais domésticos, com um gasto per capita em São Paulo de R$ 46. Ô bicho caro! E tem mais, a americana I Love Dogs vendeu uma coleira de 52 quilates de diamantes pela bagatela de R$ 7.3 milhões para um cachorrinho de uma celebridade.

Joias e bijus são outro mercado de peso, onde pingentes, coleiras personalizadas e até piercings são comercializados para alegria dos papais, não dos bichanos. Como guizos em gatos, que só servem para enlouquecer bichos de alta sensibilidade a sons, por exemplo.

Nossos comportamentos transbordam aos nossos bichos, ao que parece, projetamos em cães e gatos consumos e consumidores que gostaríamos de ser. Um estudo recente demonstra que os casos de depressão canina estão relacionados, em sua maioria, a casos em que os ‘donos’ também sofriam de depressão. Nos Estados Unidos, 55% dos cães e gatos estão acima do peso, país reconhecido também pelo alto índice de pessoas acima do peso.

Tudo bem que não usemos mais o angu (que ainda alimenta parcelas significativas de brasileiros "bicho gente”), que se invista em vacinas e em consultas veterinárias (afinal é responsabilidade de um proprietário zelar e cuidar de seu bichano), mas é preciso conter ou questionar, ao menos, o exagero que ronda casas e apartamentos. Adoro bichos, em alguns casos mais que certas pessoas. Vejo neles confiança, sinceridade, carinho e lealdade, atributos raros em alguns humanos que conheço, e insisto em ignorá-los, mas acredito que a melhor maneira de respeitar meus bichos é dar a eles a vida que eles querem — e não a que eu idealizo ou a qual me realizo. Sem coleiras de brilhante, mas com quintal para brincar. Sem tirar onda com ou vizinhos, mas com muito carinho.

Talvez investir todo esse dinheiro em entidades que cuidam de bichos ou em campanhas que conscientizem as pessoas que bicho merece carinho e respeito seja melhor que comprar rações caríssimas, ou roupinhas de grife que chegam a absurdos U$ 7 mil. Acho que a pressa das pessoas, sem tempo para si, para os seus e para os bichanos, está dando ao cartão de crédito mais valor que cinco minutos para brincar com seu bichano. 

Na verdade, vida de cão é uma expressão que também perdeu seu sentido, assumiu novo significado, não é mais aquele que fica com a sobra e a sombra, mas aquele que tem ração cara, brilhante na coleira ou roupinha chique, mas não tem mais companhia, uma bola velha pra brincar ou espaço para correr. Às vezes, acho que os cães de antigamente eram mais felizes: parece que agora os felpudos estão realmente levando uma vida de cão.


Roberto Mendes é publicitário, especialista em marketing pelo Instituto de Administração e Gerência da PUC-Rio, pós-graduado em Engenharia Ambiental, professor titular da Universidade Candido Mendes e sócio da Target Comunicação 


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