Parcelando a alma

quinta-feira, 27 de março de 2014

Comprar já permitiu ao homem se redimir de seus pecados frente ao criador antes da contrarreforma de Lutero, comprar já permitiu libertar escravos quando a ignorância era quem dominava, comprar já permitiu muitas coisas e hoje o que mais produz é dependência e endividamento.

Como verbo bitransitivo, o verbo comprar parece mesmo estar na moda, superafinado com a liberação sexual, mas isso é outro assunto. O fato é que seguimos comprando e comprando.

Faz parte do show e do esforço publicitário dissociar o comprar do pagar, principalmente faz parte do esforço esquecer-se totalmente do quanto deixamos de ter tudo o  mais para ter algo, uma vez que o capital é finito e o desejo, não. Vende quem tem melhor apelo, vende quem se torna prioridade, vende quem convence que pagar é um detalhe. 

Neste mesmo espetáculo do consumo, diante da dissociação citada acima, faz-se grande associação do comprar ao ter, ao possuir, ao pertencer e principalmente ao ser.

A desconstrução da responsabilidade do pagar, que advém do comprar, gira a principal engrenagem do nosso consumo hoje, o financiamento, o parcelamento, o endividamento. Um país endividado com um povo endividado, isso define o Brasil hoje. Quer seja pelo exemplo, pela falta de consciência da população ou pela falta de oportunidade, o consumo no Brasil gira na base da prestação, e isso é um castelo de cartas, onde o primeiro a não pagar gera impacto em toda a cadeia. Assim, cada vez mais crédito é preciso para garantir o crédito existente.

No país da maior taxa de juros do mundo no rotativo do cartão de crédito, e segunda maior elevação da taxa de juros do mundo (só perdemos para a minúscula República da Gâmbia, um aglomerado na África) seguimos comprando coisas em 6, 12, 36, 60 até 360 vezes, como é o caso do parcelamento de imóveis.

Parcelar pode não parecer problema quando pensamos em imóveis ou remédios, mas o consumo inteiro baseado nisso e principalmente alardeado com o famoso "sem juros” é que impressiona no — e pressiona o — mercado. 

Um crédito de automóvel consume em 24 meses quase 50% do valor inicial do veículo em juros, o que significa que ½ carro deixa de ser vendido a cada carro financiado. Um enorme absurdo, um enorme prejuízo para o poder de consumo de uma família.

Apesar da demência do congresso, que definiu a taxa máxima de juros na constituição em 12% a.a. (a única no mundo com tal debilidade) seguimos com enormes margens embutidas em produtos e serviços, que escamoteiam taxas bem maiores que as sugeridas na constituição. 

Reféns de um truque onde, apesar do cartão de crédito ser considerado compra à vista e ser merecedor de igualdade de vantagens nesse tipo de venda, um sem-número de negócios oferece desconto no pagamento à vista de verdade, ou seja, aquele onde se paga em dinheiro ou boleto. Chamadas prometem parcelamento sem juros e desconto à vista. Ou eu deveria ter sido reprovado em cálculo no curso de engenharia que cursei ou desconto à vista equivale a acréscimo na venda a prazo, mas na linguagem do consumo a culpa se desprende e seguimos comprando "sem juros”.

A verdade é que, de prestação em prestação, não sobra nada. Com produtos cada vez piores, com taxas e dívidas cada vez maiores, com prazos aparentemente melhores e poder de compra sempre menor, seguimos fingindo que está bom e atrasando uma prestação para não perder a outra.

No malabarismo do parcelamento sem juros, o brasileiro padrão vive endividado tentando ter seu padrão de consumo melhorado ou ao menos mantido. É o padrão de vida determinando o padrão que vivemos. É a prestação definindo nossa "prestabilidade social”. Só presta ao mundo quem compra. Consumo, logo existo, diria Descartes em tempos atuais!

O mantra do consumo credita mérito apenas na prosperidade financeira, impede que seja dividido com atributos como conhecimento, segurança, felicidade ou qualquer outro valor.

Já que o peso social não permite mais dividirmos nossa vida em muitos atributos, seguimos dividindo as compras e parcelando a alma. Vai que volta a moda comprar perdão. Pode ser um bom momento para abrir um crediário no céu, mas não esqueça, se for seu caso, prefira o cartão de crédito que tem programa de milhagem...


Roberto Mendes é publicitário, especialista em marketing pelo Instituto de

Administração e Gerência da PUC-Rio, pós-graduado em Engenharia Ambiental,

professor titular da Universidade Candido Mendes e sócio da Target Comunicação


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