Seiscentas semanas depois

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Caro leitor, este é o artigo de número 600. Por seiscentas semanas escrevo buscando esclarecer ou opinar sobre o mercado e sobre nós, que compomos este mercado. Como semana é uma unidade de medida do tempo, resolvi escrever sobre isso: tempo.

Quando trabalhamos com pesquisa de mercado, em especial sobre temas mais constrangedores, como sexo, drogas, salários e ética, é comum projetarmos a pergunta a uma terceira pessoa inexistente para obtermos do entrevistado informações a respeito dele mesmo, pois comumente usamos nossos valores para definirmos os valores dos outros.

Isso nos permite julgar ferozmente o comportamento de terceiros, embora tenhamos, por vezes, certa nuvem sobre o nosso. Falta imparcialidade quando projetamos sobre nós o julgamento. Assim, um novo peso surge para nossa própria mão, moral ou valores.

Nesta lógica, ouvimos e falamos muito sobre como tudo se degrada ao longo do tempo.  Como ultimamente tudo tem ficado pior. Como a moral das pessoas, a qualidade dos produtos, a honestidade da propaganda, o nível dos programas de TV e o comportamento da notícia parecem piorar.

O que comumente esquecemos é que não somos só plateia da vida. Somos atores, e se não podemos mudar o mundo, ao menos podemos impedir que o mundo nos mude. Mas há quem insista em ser plateia de si mesmo, existe uma massa que assiste ao filme de suas vidas. Por vezes, como meros espectadores.

Se o programa de TV é ruim, por que não paramos de assistir? Podemos ler um livro, praticar um esporte, conversar. Se o produto não tem qualidade, precisamos parar de fazer nossas escolhas baseadas em preço. Se a propaganda mente, podemos nunca mais comprar o produto ou a marca. Se o jornal é tendencioso, podemos não assistir, não ler, riscar aquela fonte como meio de informação.

Temos muito mais poder do que imaginamos, e o tempo não muda as coisas. O que o tempo faz é mudar a nós, mas a escolha desta mudança e sua direção é nossa. Escolhendo ótimos amigos, sem olhar para quanto ganham, podemos nos proteger de pessoas ruins, gananciosas ou interesseiras. Escolhendo produtos antigos, podemos fugir dos novos que são ruins, que impressionam mas não funcionam. Quase sempre temos escolhas.

Quase sempre as mudanças para pior são frutos de nossa passividade, ou na opção de não escolher ou de seguir a massa, aquela que insiste em se ver como plateia de sua própria vida e que acredita em discursos de produtos, políticos ou grupos econômicos.

Nossos produtos, valores e cultura são todos frutos de nós mesmos. Nos espelham, nos iluminam e nos dirigem ao nosso próprio destino. Nossa cultura cultua o dinheiro como prioridade absoluta. Da favela aos condomínios fechados, estamos nivelados no mesmo interesse pelo dinheiro, todos desejam a mesma roupa, carro, posse e pose. Esta pressão pasteuriza gostos, e empurra todos ao ter. Mais uma vez, não foram as coisas que pioraram, fomos nós que pioramos. A nós mesmos e as coisas.

Nunca houve tanto acesso à informação, acesso a uma cultura dissolvida, descentralizada, um saber de todos. Mas permanecemos numa posição de recebedores universais, somos todos AB positivo. Incapazes de doarmos algo de nós para o outro, nem a nós mesmos. 

Quem recebe sem pensar, quem não critica ou duvida, segue acreditando que viver é consumir, mas há alternativas. Viver pode ser experimentar, ousar, compartilhar, aprender, mudar, manter, melhorar. Há como sermos doadores ao invés de recebedores.  E, diferente do dinheiro, quanto mais se doa vida, mais se tem. 

Quanto mais mudamos o mundo, melhor ele fica. O tempo não piora nada, ao contrário, o tempo transforma passado em experiência e temos condição de fazer do amanhã algo melhor do que o hoje. Mas só pode assumir esse compromisso quem olha para a vida e se vê como ator, não como plateia; somente quem olha e se vê como doador, e não como recebedor. Seiscentas semanas depois, sinto que muito melhorou. E ao olhar para as próximas seiscentas semanas, miro um ponto melhor e sigo entusiasmado, na crença de que o mundo pode ser tão bom quanto pudermos ser. Produtos, marcas, consumidores, propagandas e pessoas.  


"Roberto Mendes é publicitário, especialista em marketing pelo Instituto de

Administração e Gerência da PUC/RJ, pós-graduado em Engenharia Ambiental,

professor titular da Universidade Candido Mendes e sócio da Target Comunicação.” 


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