Colunas
Quem não come, não aprende na escola
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
Em 1992 escrevi um texto com o mesmo título deste artigo, antes mesmo do programa de cestas básicas, onde chamava a atenção para a triste realidade de crianças que não aprendiam porque passavam fone. Este texto faz parte do livro “Se você finge que ensina, eu finjo que aprendo”, hoje com 70.000 exemplares vendidos e já na 27ª edição.
Nós podemos pensar na fome qualitativa e quantitativa. Se não conseguimos viver com a fome quantitativa, com a qualitativa, vivemos sim, mas precariamente. Comemos até muito, conforme a situação, no entanto nos alimentamos mal e não damos ao nosso organismo melhores condições de produção e melhores condições para aprender. Nosso cérebro depende de alimentos saudáveis e variados para estar bem oxigenado, do mesmo modo que a alimentação de um atleta precisa estar adequada aos exercícios diários que ele faz.
O professor Marin, da Universidade de Genebra, nascido no Peru e com muitos trabalhos realizados pela Unesco, nos dizia num congresso internacional de educação em Lucas do Rio Verde, Mato Grosso, no ginásio do Colégio La Salle, que as repúblicas latino-americanas trouxeram a liberdade política, porém marcada fortemente de um grande genocídio. Não pelas guerras de independência, mas pela fome gerada pelo desequilíbrio cultural das grandes massas. Foi algo semelhante à abolição da escravatura no Brasil: a Lei Áurea poderia ter sido mais dourada se ao seu lado fossem editados alguns direitos sociais para os libertos.
A nossa velha república continuava rural, feudal, com crianças que morriam de fome, desnutrição e desidratação. As escolas, ainda no governo Vargas, deveriam atender à população por míseros quatro anos obrigatórios. Mesmo assim, quando vejo uma foto de nossa quarta série primária numa escola pública do interior do Estado do Rio de Janeiro, encontro mais cinco colegas. Éramos oriundos de uma primeira série com duas turmas de trinta alunos cada uma. Em quatro anos a escola conseguiu expulsar de suas carteiras, seja pela reprovação, seja pela necessidade das crianças ajudarem nas colheitas, 90% de seus alunos.
Crianças cobriam buracos de estradas federais em pleno sertão nordestino para pedir aos motoristas e viajantes algum dinheiro em troca, sem que soubéssemos a finalidade. A verdade é que famílias muito pobres, necessitando de mão de obra dentro de casa, não se preocupavam com a escola. Pais semianalfabetos não acreditavam que a educação trouxesse alguma mudança.
Voltando ao meu texto, encontrei o que segue: “Matriculei-me aos sete anos, como manda a legislação, numa escola simples da União, nada aprendi, livro não tinha, não conheço lição alguma, só as que consegui copiar em vários pedaços de amassados papéis; dormia nas aulas em plena manhã, sentia fome e esperava a hora da merenda, momento alegre em que ficava entregue à melhor lição: encher o prato e comer”.
O programa “bolsa família” foi implantado e, de certo modo, desarmou uma grande “bomba” humana sobre a qual estávamos sentados. Vozes variadas fizeram-se ouvir contra essas medidas, geralmente por parte de pessoas que não conheciam a realidade brasileira, nem a necessidade de pessoas com melhor nível para atender às demandas, hoje claras, em nosso mercado de trabalho. Ouvia-se, por exemplo, que as crianças se deslocavam para a escola só para comer. É fala de quem nunca sentiu fome. Mas, felizmente, o programa é implementado e a contrapartida vai sendo corrigida ao longo do tempo, com exigências de domicílio, vacinas e a frequência à escola.
Para a mentalidade das famílias o que funciona é uma troca aberta de alimentação por escola, saúde e endereço territorial.
É verdade que muitas crianças não têm interesse pelos estudos que lhes são oferecidos. Sendo de regiões interioranas ou mesmo urbanas de bairros muito pobres, a escola não fala à realidade das crianças e adolescentes. A clientela das escolas mudou, mas os programas nada mudaram e encaram esses novos alunos como se eles vivessem dentro de uma classe social média alta ou como se fossem filhos de uma nobreza que não mais existe. A escola feita para os ricos e que objetiva abrir caminhos para a universidade não serve aos pobres que, hoje, chegam a ela, porque os pais recebem o “bolsa família”.
Por esta razão é importante verificar que certas metas são atingidas, embora não totalmente, e as crianças podem atravessar a escola padecendo de um mal terrível porque conheceram e frequentaram uma escola que desenvolve uma pedagogia “para pobre continuar pobre”.
Mal alimentadas na primeira infância, fora de um ambiente cultural que ofereça incentivo aos estudos e diante de currículos distantes do contexto de vida que sempre levaram, acabam por aprender com mais vagar. Neste ponto a perversidade pedagógica de certas mentalidades é, verdadeiramente, criminosa ao desenvolver duas vertentes, ambas maléficas: a aprovação e a reprovação automáticas. Enquanto a primeira denota falta de ética, a segunda demonstra incompetência. Por isso fiquei muito feliz quando vi, num município que assessorava na formação continuada de professores, uma ação concreta do Ministério Público, solicitando à Secretaria de Educação projetos que evitassem a reprovação e a evasão escolar. Naquela localidade essa medida surtiu efeito e os professores perceberam que, de acordo com a lei do ensino, há o direito à vaga e à aprendizagem. Geralmente nos preocupamos com a primeira, quando a segunda, sem dúvidas, é outro direito claro.
Afinal, tantos investimentos em educação devem promover o retorno social com cidadãos mais preparados para cumprir seus deveres e exercer seus direitos.
Com todo este programa federal de ajuda às famílias o que houve foi um incremento do comércio das vilas de interior por causa de um giro econômico constante e sólido. Por outro lado, quem produz e trabalha no agronegócio percebeu que o governo está comprando a sua produção através do “bolsa família”. O sistema não é perfeito porque as três leis da pirâmide econômica permanecem. Citarei duas: a primeira lei diz que tudo favorece a pirâmide, o que vale dizer que os estamentos sociais não mudarão com a melhor alimentação; a segunda lei afirma que todo dinheiro que cai na pirâmide sobe para o topo, portanto, os que estão na parte superior da pirâmide lá continuarão, e beneficiados por ações concretas que chegam aos mais pobres.
Seria, então, condenável tal programa? De modo algum, porque ele impediu a explosão da “bomba” humana que destruiria o tecido social brasileiro.
Mesmo estando longe do ideal, vemos pelas pesquisas a indicação de que as crianças oriundas de famílias beneficiadas estão mais assíduas à escola e obtendo melhores resultados acadêmicos. Isto significa que não nos devemos impressionar com aqueles faltosos que correm até a escola solicitando declaração de frequência, para regularizar os cartões magnéticos do programa. Precisamos olhar, sim, para a grande maioria que está frequentando e cumprindo a contrapartida. As escolas devem estar atentas para acionar as engrenagens do Estado no sentido de corrigir os faltosos, afinal o Conselho Tutelar existe, também, para esse fim.
A república tem suas armas, as pessoas é que entendem, por vezes, de modo deturpado, como se o Estatuto da Criança e do Adolescente fosse algo que só tivesse criado direitos e, nunca, deveres.
Hamilton Werneck
Hamilton Werneck
Eis um homem que representa com exatidão o significado da palavra “mestre”. Pedagogo, palestrante e educador, Hamilton Werneck compartilha com os leitores de A VOZ DA SERRA, todas as quartas, sua vasta experiência com a Educação no Brasil.
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