Cidade derretida - 11 de janeiro 2012

sexta-feira, 06 de abril de 2012

E alguns me perguntam: como começo outra vez? E alguns se perguntam: quando nascerá o sol? E nos perguntamos: o que mudou em nós?

“Papai, nós vamos morrer?” Perguntou a menina dando as mãos ao pai enquanto deixava a sua casa e via a cidade derreter. O pai cheio de medo de que aquilo se tratava mesmo do fim do mundo respondeu com segurança, ainda que as lágrimas estivessem presentes em seus olhos: “Não, minha filha! Vai ficar tudo bem.” A menina questionou sem entender bem a pergunta que fazia: “Pai, é o fim do mundo?”. O pai apenas respondeu com imenso carinho ainda que enorme aperto no coração: “É só um treinamento. Papai está com você, papai está com você minha filhinha”. E o silêncio do amor cantou enquanto alguns corriam e outros apenas esperavam. Houve ainda aqueles que não puderem nem correr ou esperar. Ficaram onde estavam sem saber exatamente o que acontecia. Fecharam os olhos e nunca mais os abriram outra vez. Abriram as asas para voar para além das alturas de onde moravam para uma nova morada.

O menino ainda nem sabia falar. Mas foi protegido pelo seu pai que apenas com a saliva o salvou. Não pôde salvar a sogra, nem a esposa. Salvou o filho mesmo debaixo da lama e entorpecido pela incerteza do que acontecia lá fora. No escuro das ruínas sobre suas cabeças, pai e filho experimentavam e mostravam ao mundo o milagre no meio do fim de tudo. Proteção de quem apenas esperava o céu que já havia anoitecido após o cinza do caos. Lições de quem insistiu na fé, mesmo sem saber se apenas a fé salvaria a si e aos seus. Nem todos puderam ser salvos, mas ninguém será esquecido. Memórias que jamais se apagarão. Não é preciso fotos para relembrar de quem já não empresta seu rosto. Saudades que ainda que aquietadas pelo tempo ainda gritarão cada vez que o 11 de janeiro for pronunciado, cada vez que uma injustiça for cometida... A dor é uma música triste que anuncia que nem sempre adeuses permitem as devidas despedidas. Dói a incerteza de que tudo o que se perdeu pode ter sido em vão.

Os amigos tinham o sonho de ser bombeiros. Salvar vidas. Pela honra e pelo afeto às pessoas. Pela glória que nem sempre é respeitada. Há aqueles que ainda dão suas próprias vidas pela esperança. Há aqueles que ainda entregam sua própria carne pela promessa que fizeram a si mesmos de jamais desistir do que acreditam. E mãos unidas foram pás na busca desesperada para dar tempo a quem pouco tempo tinha. Aqueles não se foram sonhando como alguns que partiram sufocados por escombros enquanto dormiam, mas se despediram praticando o sonho de cumprir com dignidade as suas missões. E na tragédia há certas belezas que não se percebem no cotidiano. É nas tragédias que extrapola-se o que é ser humano com toda a sua incapacidade de herói, mas com toda a sua força de mortal. O bem se mostra muito maior que o mal. O que é importante se evidencia.

O pobre senhor doou tudo o que tinha. O piloto de moto famoso internacionalmente também se juntou àqueles que defendem os civis. O advogado virou médico ao tentar salvar o menino. Sede e fome mesmo com a carteira cheia de dinheiro. O comerciante pegou tudo o que tinha na mercearia para distribuir aos vizinhos fazendo contraponto. Quem não tinha sequer abrigo para si abrigou com o peito aqueles que não tinham mais razões ou motivos. Todos cavaram com as mãos sem saber por que cavavam. Cavavam sem qualquer certeza se ainda haveria vida debaixo do mundo. O helicóptero da TV que filmava o que o mundo inteiro já sabia, a dimensão da tragédia, desceu para salvar quem estava lá embaixo sem saber de nada, sem sequer ter qualquer ideia sobre o que estava acontecendo. Isolados, não foram poucos os que rezaram para clarear o dia. Rezavam na completa incerteza se viriam luz mais uma vez. E assim, todos que aqui estão, assim como aqueles cujas histórias não foram ou jamais serão contadas deram as mãos, o coração e a alma. Viram lágrimas em rios ferozes. Choraram fortes chuvas em cada encosta desabada, em cada morro derretido. Poderiam desistir como cada rua alagada, mas interviram nas pseudopropostas do destino enquanto o mundo acabava sob seus pés e sobre suas cabeças...

Nada nunca mais seria como antes. Mas não dá para colocar em palavras o que foi aquele dia... É uma história que não tem como ser dignamente biografada... Nossa cidade, nosso lugar, nossa gente evaporando aos nossos olhos cheios de dor, despindo toda a nossa vulnerabilidade e incapacidade em domar o mundo.

Derretida após as cachoeiras de nuvens. Assustada por ver o céu vir tão próximo. Escondida pela terra que deu chão, a saudade, o ciúme e o amor se desmaterializaram na fonte que secou. Partida ao meio a fé ainda sim se sustentou. O mundo não acabou. A cidade persistiu ainda que sem mais de 400 de seus filhos, ainda que sem seus nobres títulos que de nada lhe serviriam mais. O que lhe serve agora são as lições de pessoas comuns que fizeram apenas o que tinha que ser feito.

E alguns me perguntam: reconstruiremos? E alguns se perguntam: como será o amanhã? E nos perguntamos: mudamos?

Juntemos nossas mãos para encontrar nossos espíritos e conectar nossas almas. Juntemos as mãos para orar e conversar com Deus. Nossa cidade foi derretida, sangram em carne viva suas feridas... Se antes ajoelhados para agradecer o dom da vida, estamos agora em posição de sentido, prontos para recomeçar, reconstruir, revitalizar, fazer melhor, mudar... Por em prática nossas intenções de futuros melhores do que tudo o que conhecemos do passado e presente.

Minha cidade, por sua vez diz no seu bom dia: já podemos recomeçar! Não sou ruína, nem escuridão. Sou um lugar em transformação. Ou nasce um novo povo ou não nasce uma nova cidade. Ou trabalhamos firmes olhando para frente com a lembrança de todos que já não me habitam ou a paralisia me manterá dormindo. Levantemo-nos todos! Há um lugar por se construir, há corações a se recuperar, há almas a se reencontrar. Vamos abrir as janelas de nossos sonhos, dispensar os discursos de piedade e com a força de cada um provar que amor por mim é amor por cada um que me escolheu, amor por mim é fazer o que é certo, é manter-se no caminho do bem que faz bem... Novo de novo para quem tem no nome o sentimento de ser nova sempre: Nova Friburgo. Novo de nova para quem tem na alma novos sentidos para dar às palavras superação, insistência, saudade, fé e união. Nova força, nova obstinação, nova lembrança, nova vida, nova gente, Nova Friburgo!

TAGS:
Wanderson Nogueira

Wanderson Nogueira

Observatório

Jornalista, cronista, comentarista esportivo, já foi vereador e agora é deputado. Ufa! Com um currículo louvável, o vascaíno Wanderson Nogueira atua com garra no time de A VOZ DA SERRA em Observatório, sua coluna diária.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.