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O resgate do “eu”: é possível? - 5 de janeiro 2012
A criança ao crescer precisa construir defesas psicológicas contra aquilo que a ameaça adoecer emocionalmente. O que ela se torna quando chega à vida adulta pode ser mais defesa do que ela mesma. Acaba havendo uma confusão entre o que a pessoa é, como indivíduo que pensa, sente e age, e o que ela se tornou devido às defesas. Está confuso para você? Vamos tentar clarear.
Ao crescermos vamos nos adulterando. O que é algo adulterado? É aquilo que não é o original, não está sadio. Por que vamos adulterando? Porque perdemos a espontaneidade, algo tão natural para as crianças. Perdemos a simplicidade e adquirimos trejeitos no falar, a honestidade até certo ponto e desenvolvemos atitudes manipuladoras no contato com os outros, perdemos a pureza, etc.
Por que isto ocorre? Quando uma criança se defronta com uma situação difícil e dolorosa para ela no relacionamento dela com pessoas importantes em sua vida, geralmente pai e mãe, ela sente dor. Criança também tem angústia, tristeza, além dos sentimentos mais evidentes como medo, insegurança, etc. Quando ela se aproxima de uma das figuras formadoras do “eu” dela e recebe rejeição, real ou não, mas que entra para ela como real, dói e ela reage a esta dor com uma defesa inconsciente. Ou seja, ela reduz, retrai, encolhe uma parte do ser para que, ao se aproximar novamente daquela figura parental, não doer tanto como antes.
Este encolhimento emocional ocorre por causa da defesa que ela construiu para lidar com a dor e a frustração. E é justamente esta retração que adultera sua espontaneidade. Ela perde uma parte do eu para preservar uma outra parte do eu e sobreviver como pessoa. Está difícil ainda de compreender? Deixa-me tentar dar um exemplo para ver se fica mais fácil.
Joãozinho não gostava da vovó porque ela era realmente uma avó ranzinza e sem paciência com crianças. Há gente assim. Várias vezes ele tentou dizer para seus pais, com a espontaneidade de uma criança de 5 anos, que não gostava da vovó. Mas naquela casa havia uma repressão de sentimentos e “Todos gostam de todos aqui!”, disse sua mãe (talvez mais preocupada com a mãe dela, a avó do Joãozinho, do que com o filho que dizia uma verdade que a mãe não queria aceitar por ser dependente da mãe dela). “Portanto,”, completou a mãe de Joãozinho, “você gosta da vovó sim!”, com uma face fechada e nervosa. Quando você aprende a cuidar bem de sua criança interior, fica fácil e agradável lidar com a criança exterior. Qualquer criança.
A verdade para Joãozinho era a de que aquela avó era “esquisita”. E era mesmo. Mas para a maneira daquela família funcionar psicologicamente, isto não era admitido. Era negado, talvez pela carência da mãe quanto à sua mãe (avó de Joãozinho), e talvez porque o pai dele não queria confusão nem com sua mulher e nem com a sogra, daí, meio que entrava na jogada na esposa, que defendia a mãe dela, não dando valor ao sentimento do filho. Que coisa complicada, não é? Isto ocorre nas melhores famílias na sociedade, mais do que acreditamos!
O que Joãozinho teve que fazer com aquela verdade de seu sentimento e percepção? Teve que aprender a se retrair, a se encolher no seu jeito de ser espontâneo e verdadeiro porque ele “captou”, mesmo sendo criança, que seria possível perder o amor (?) da mãe se mantivesse a verdade, a de que a vovó é chata. Ele teve que adulterar uma verdade, retrair seu jeito de ser, para ser de uma forma que, talvez, pudesse ter a aprovação dos pais.
Isto é um exemplo de como se constrói a neurose, que é a perda do eu saudável. Neurose é você calçar sapato número 38 e querer colocar nos pés um de número 37. Talvez vá entrar, mas ficará desconfortável. Ou seja, você até consegue funcionar na sociedade como pessoa, mas há uma pedra no sapato emocional incomodando o tempo todo. Que pedra é esta? É a perda da naturalidade, da espontaneidade, da verdade do ser (da pessoa) e de ser (existir).
Algumas pessoas irão morrer assim, com personalidade encolhida. Poderão desenvolver a doença de Alzheimer, que parece ter um dos componentes da sua causa, um esquecimento provocado pela dificuldade da pessoa lidar com lembranças e realidades dolorosas, de maneira que seu cérebro produz a perda da memória. O que você diz para o seu corpo, ele obedece, mesmo que adoeça. Se você diz para si mesmo por muito tempo, não necessariamente com palavras, que não quer pensar no que dói, seu cérebro obedecerá e fará o apagamento, por causa da sua necessidade!
Dá para resgatar o “eu” original perdido ao longo da infância? Teve alguém que o preservou plenamente, sem ser Jesus Cristo? Não conheço. Alguns se interessam neste trabalho, outros não. O primeiro passo é perceber que houve uma perda, quando, então, você não fica satisfeito com o que é e deseja melhorar. O segundo é querer recuperar. O terceiro é fazer algo prático neste sentido, assumindo que agora a responsabilidade de amadurecer está em sua mão. E o passo fundamental tem que ver com a espiritualidade. Tudo isto é um processo para a vida toda.
Cesar Vasconcellos de Souza
Saúde Mental e Você
O psiquiatra César Vasconcellos assina a coluna Saúde Mental e Você, publicada às quintas, dedicada a apresentar esclarecimentos sobre determinadas questões da saúde psíquica e sua relação no convívio entre outro indivíduos.
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