Take for granted – simbiose emocional inconsciente

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Carlos telefona para sua esposa, Célia (nomes fictícios, história real), e diz: "Não pude telefonar antes para você porque estava na rua e esqueci meu celular aí em casa.” Célia, comenta, com um ar de general, que confere sua tropa com olhar altivo: "Ããã, está bem. Por que não usou um telefone público?”. (O motivo deste contato não era nada sério e urgente.) José telefona pela terceira vez em dez minutos para Renata, que antes estava tomando banho (nomes fictícios, história real) e ela atende. José diz, irritado: "Já te telefonei duas vezes!”, como quem diz: "Como você ousou não me atender antes?”

Relacionamentos familiares criam um tipo de simbiose ou união íntima que pode extrapolar a normalidade. Não é fácil definir o limite da normalidade e da anormalidade nesta questão também. Quando um homem e uma mulher se unem, por amor, num casamento, ocorre uma certa fusão de ligação afetiva, mas não acontece e nem deve acontecer a perda da individualidade e da identidade. E não se deve perder o respeito pelo fato de que ali na sua frente, dentro de casa, ou deitadas na mesma cama estão duas pessoas diferentes, com histórias diferentes, famílias de origem diferentes, temperamentos às vezes diferentes, gênero diferente, gostos diferentes. 

A expressão em inglês "take for granted” significa, literalmente, "ter como garantido”. Algumas pessoas casadas têm, inconscientemente, como garantido que o outro (marido, esposa) está lá para elas sempre. Isto pode parecer amor e compromisso, mas será que não pode funcionar, em certos casos, como dependência, exagero no apego afetivo, e até como arrogância e prepotência? Pessoas assim não conseguem admitir que o outro com quem convivem maritalmente não é um "mago” ou "fada” ou "um deus” que as salva de tudo. A simbiose afetiva que elas criaram na sua mente, e que é algo talvez inconsciente e automático, "diz”, se referindo ao companheiro(a): "Você tem que estar aí na vida para mim. Não ouse não pensar em mim, não ouse não me colocar como a coisa mais importante de sua vida!”. Não falta humildade nestes casos?

Podemos pensar que numa relação de amor entre um homem e uma mulher cada um precisa realmente "estar lá” para o outro. Isto é, sim, verdade, mas como é este "estar lá” para o outro? Será que uma pessoa muito insegura pode se agarrar emocionalmente ao cônjuge e querer que ele esteja lá para ela de forma exagerada? Dependência exagerada de outra pessoa é amor?

Uma mulher (ou um homem) dependente afetivamente demais do marido (da esposa) geralmente passa nas entrelinhas do relacionamento um peso grande para o cônjuge, porque esta dependência afetiva coloca, inconscientemente, sobre o outro a responsabilidade de este outro ser tudo, ser o alicerce, ser a proteção, ser a âncora, ser o oxigênio que o outro respira. E isto é muito pesado. O outro pode "comprar” esta responsabilidade e ficar numa posição de "sou deus”, enquanto que o dependente fica numa posição de "sou frágil”. 

A solução deste tipo de dinâmica emocional conjugal envolve cada um ser honesto primeiro consigo mesmo e admitir que tem assumido um papel ou script doentio, seja de dependente exagerado, seja de "salvador” do outro. E cada um precisa aceitar que em parte há um vazio pessoal, individual, que tem origem emocional (angústia psicológica) e espiritual (angústia existencial), e que nenhum ser humano é responsável por aliviar estas angústias da vida do outro. Isto significa que cada um tem que assumir seu vazio profundo interior e parar de ficar contando com o outro para estar lá sempre para resolver tudo do que sente falta.


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César Vasconcelos de Souza

Cesar Vasconcellos de Souza

Saúde Mental e Você

O psiquiatra César Vasconcellos assina a coluna Saúde Mental e Você, publicada às quintas, dedicada a apresentar esclarecimentos sobre determinadas questões da saúde psíquica e sua relação no convívio entre outro indivíduos.

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