Religião doentia versus não doentia

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Como saber se a maneira que a pessoa vive a religião é doentia? Existem parâmetros científicos para se medir isto?

Freud disse que religião é uma “neurose obsessiva”, mas admitiu que “os verdadeiros crentes têm melhores defesas contra certas aflições neuróticas.” Iracy Doyle, psiquiatra e psicanalista, no prefácio do livro de Erich Fromm “Psicanálise e Religião”, escreveu que Freud exagerou na crítica contra a religião, por, talvez, ter avaliado mais as formas (rituais) do que a espiritualidade, ele que veio de uma formação familiar judaica, rica em cerimônias ritualísticas.
Um dos cientistas que estuda o fator religião-saúde mental é o Dr. Harold Koenig, professor de psiquiatria e ciências do comportamento da Universidade de Duke, EUA. Num de seus artigos, ele apresenta dados científicos sobre este binômio religião-saúde. Vejamos algumas informações do “Religião, espiritualidade e transtornos psicóticos”, Revista de Psiquiatria Clínica, 34, supl 1; 95-104, 2007, disponível em http://www.hcnet.usp.br/ipq/revista/vol34/s1/95.html.

Nem sempre é fácil distinguir se a pessoa com manifestações religiosas apresenta-se saudável ou mentalmente alterada. Já atendi pessoas que aparentavam ter vida mental saudável mas com comportamento religioso fruto de alterações mentais. Vi as com sintomas mentais fronteiriços com a psicose, e portadoras, naquele momento, de alteração espiritual (possessão). E vi indivíduos com mistura disto, tendo alterações comportamentais de causa orgânica e psicológica, junto com perturbações espirituais.

Avaliando pessoas sob o ponto de vista psiquiátrico, um dos componentes verificados é o pensamento ou cognição. Há três tipos de avaliação do pensamento de uma pessoa: conteúdo, ritmo e estrutura. Pessoas com psicoses (popularmente chamada de “loucura”) geralmente apresentam alterações do conteúdo do pensamento, que são os delírios. E no assunto desta matéria, segundo o Dr. Koenig, cerca de 1/4 a 3/4 dos delírios em psicóticos, especialmente na esquizofrenia paranoide, são delírios místicos. Quando isto está presente, a pessoa pode manifestar, por exemplo, dizendo-se ser Jesus Cristo, ou um “santo”, diz que pode realizar milagres, ou que tem visões, etc.

Uma pessoa normal pode ter visões de origem espiritual. O apóstolo Paulo, Daniel, João (no Apocalipse), e outros personagens bíblicos relataram visões e não eram psicóticos.

Dentre as diferenças entre uma pessoa religiosa saudável e uma não saudável, podemos citar algumas que o Dr. Koenig descreve no seu trabalho científico:
1) Para o cientista J.M. Pierre, as crenças ou as experiências religiosas são doentias quando prejudicam a capacidade da pessoa executar suas atividades diárias. Se ela tem vida normal no trabalho e nas relações sociais, sua crença ou experiência religiosa poderá não ser doentia. Que tipo de problemas revelariam a alteração mental neste caso? Problemas com a polícia, incapacidade de cumprir suas obrigações, não manter-se em emprego nenhum, ameaças suicidas ou homicidas, não pensar com clareza, etc.

2) Um religioso que apresenta experiências místicas mas que tem mente saudável, com o passar do tempo manifestará crescimento pessoal positivo, se tornará mais maduro, mais centrado, equilibrado emocional e espiritualmente.

3) A pessoa com alteração psicótica não consegue perceber a natureza mística dos seus relatos e mantém a ideia de que ela tem poderes especiais, etc. Aliás, uma das características típicas da psicose é a não admissão, ou negação, por parte da própria pessoa de que ela não está bem. 

4) A pessoa normal admite e reconhece que sua experiência espiritual extraordinária é algo de fundo espiritual, e ao mesmo tempo mantém contato social normal, enquanto que o psicótico mesmo admitindo que sua experiência religiosa é de fundo espiritual não consegue fazer conexões saudáveis com os outros, mas somente baseado nos delírios e possíveis alucinações e em outras alterações que prejudicam sua habilidade social.

5) Dr. Koenig, cita Andrew Sims, psiquiatra da Grã-Bretanha que coloca mais critérios para distinguir pessoas com crenças religiosas saudáveis das com delírios. Diz que (a) é possível analisar o que ocorre tanto no comportamento como na experiência subjetiva e notar que há sintomas de doença mental; (b) há sintomas detectáveis de doença mental em outras áreas da vida da pessoa, outros delírios (grandeza, ciúme, perseguição, etc.), alteração grave do humor, etc.; (c) o estilo de vida, as metas pessoais depois da experiência mística revelou a presença de doença mental ao invés de resultados positivos e enriquecimento espiritual. Estudos confirmados por Siddle et al. (2002a; 2004).

6) O indivíduo religioso mentalmente saudável sabe que sua vivência espiritual foi sobrenatural e ele faz parte de um grupo de pessoas que compartilham crenças e experiências de uma forma culturalmente adequada, sem ter outros sintomas de doença mental que prejudiquem os pensamentos, consegue manter seu trabalho, não tem problema com a lei do país, não causa danos a si mesmo, e cresce como pessoa.

Koenig, também reconhece que “há sempre a possibilidade de que uma pessoa mentalmente doente (até mesmo aquelas com doença psicótica) tenha crenças religiosas e experiências místicas que sejam culturalmente normativas e possam, de fato, ajudar a mais bem lidar com a sua doença mental.” E, disse mais: “O envolvimento religioso não psicótico pode ter impacto positivo no curso da doença e frequência de exacerbações psicóticas, merecendo, assim, apoio e encorajamento dos clínicos.”

 

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César Vasconcelos de Souza

Cesar Vasconcellos de Souza

Saúde Mental e Você

O psiquiatra César Vasconcellos assina a coluna Saúde Mental e Você, publicada às quintas, dedicada a apresentar esclarecimentos sobre determinadas questões da saúde psíquica e sua relação no convívio entre outro indivíduos.

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