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O que entra no lugar da inocência?
Campeonato Mundial de futebol, México, 1970, partida entre Brasil e Peru. Tudo pronto. Só faltava o juiz autorizar o início da partida. O time do Brasil tinha a saída da bola. De repente Pelé se agachou, desamarrou uma chuteira, a amarrou de novo, e fez o mesmo com a outra. Levou uns 30 segundos neste ato. Atitude inocente, sem propósito?
Ele havia combinado aquilo com a empresa de material esportivo, para que câmeras de TV mostrassem para o mundo todo a marca da chuteira. Em 30 segundos ele ganhou 25 mil dólares da tal empresa. Um ídolo popular manipulando todos por 30 segundos por interesse econômico. E a chuteira preferida dele era de outra marca, a qual ele usava, adaptada com a marca da empresa que patrocinava Pelé.
As crianças crescem, vão perdendo a inocência, e se tornam adultas. Ocorre uma “adulteração” no ser criança. Um produto foi adulterado quando não é o original. Foi falsificado, corrompido. Ao crescer, ficamos adulterados? Perdemos a originalidade, a espontaneidade, a sinceridade, a verdade? O que entra no lugar da inocência?
Dr. Paulo Amarante é pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Laps/Ensp/Fiocruz) e presidente honoris causa da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme). Veja algumas ideias dele numa entrevista disponível em http://www.cee.fiocruz.br/?q=node%2F584.
“Elegeu-se a depressão como doença a ser cada vez mais alargada, para abarcar situações da vida, como conflitos, desgosto, desemprego, separação, luto, e formatar como doença... Começou-se a observar que esses medicamentos [antidepressivos] geram dependência e que sua suspensão e retirada é tão difícil quanto a de uma droga ilícita ou do álcool. Os laboratórios farmacêuticos, no entanto, encomendam e financiam pesquisas que patologizem [rotulam como doença] o comportamento das pessoas diante de dificuldades cotidianas.”
“Cada vida é muito pessoal. O normal não é o estado de bem estar eterno, permanente, ideal. O normal é a capacidade de reação às adversidades. O homem é um ser complexo, e as alterações bioquímicas não seriam causa, nem necessariamente efeito [da depressão]. É algo simultâneo; o homem pensa a partir de processos simbólicos e neuroquímicos ao mesmo tempo.
A teoria do distúrbio neuroquímico vem sendo criticada desde a década de 1970, e só não cai devido a um forte interesse mercadológico. No caso dos antidepressivos, principalmente, pesquisas muito sérias mostram que eles têm efeito igual ou inferior ao placebo, à psicoterapia ou a outras abordagens não científicas, como as religiosas. Há ainda os grupos comunitários que se organizam para dar suporte, os amigos...”
Quando a jornalista perguntou se na prescrição de remédios feita por médicos há também uma guerra entre saúde e mercado, dr. Paulo respondeu: “É sempre a política de mercado versus a política de saúde. O trabalho de Robert Whitaker mostra como a indústria farmacêutica e a classe psiquiátrica estão aliadas para produzir, com pesquisas, uma elasticidade no conceito de depressão de forma a abarcar situações da vida cotidiana como conflitos, desemprego, desgosto, separação, luto.
Essas situações começaram a ser formatadas como depressão. Um dos trabalhos do Bob [Robert Whitaker], que foi o primeiro a apontar os reais interesses envolvidos nesse processo, mostrou que os laboratórios pagam milhões aos médicos para fazerem pesquisas e fundamentarem as situações de mal estar como patológicas [doentias]. O sofrimento necessário, humano, é patologizado [tido como anormal]. Em outro livro seu, Psiquiatria sob influência: corrupção institucional, danos sociais e proposições para a reforma, Bob mostra como os laboratórios vão aos centros de pesquisa, financiam estudos e, ao longo do tempo, compram resultados. Os laboratórios farmacêuticos não investem em tecnologia, investem fundamentalmente em publicidade.
Na comunidade [pobre] vemos uma mãe que perdeu um filho contar com uma rede de apoio, de solidariedade das vizinhas que vão dormir com ela, que levam um bolinho. Mas isso não é valorizado. A primeira coisa que se faz quando se perde alguém é tomar um antidepressivo para suportar a crise. O que é preciso, no entanto, é viver aquela crise, e as redes são importantes para isso.” Jesus disse: “Agora se aproxima o príncipe deste mundo e ele nada tem em mim” O que entra no lugar da inocência?
Cesar Vasconcellos de Souza
Saúde Mental e Você
O psiquiatra César Vasconcellos assina a coluna Saúde Mental e Você, publicada às quintas, dedicada a apresentar esclarecimentos sobre determinadas questões da saúde psíquica e sua relação no convívio entre outro indivíduos.
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