O “paciente escolhido” tem coisas saudáveis que seus parentes podem não ter

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

“Paciente escolhido” é um termo usado por psicólogos e psiquiatras para designar o membro de uma família considerado o problemático. É o popular “ovelha negra”. O “paciente escolhido” reflete, na verdade, problemas na família. O relato a seguir é verídico. Mudei algo protegendo a privacidade dos envolvidos.
Este “paciente escolhido”, 48 anos de idade, é o 5º. de 7 filhos. Seus pais são trabalhadores. A mãe “nervosa”, autoritária, abusiva verbalmente, boa cuidadora dos aspectos físicos dos filhos, mas limitada quanto aos cuidados emocionais. Seu pai, mais afetivo que a mãe (há homens mais carinhosos do que algumas mulheres!), porém não carinhoso com este filho, dedicando-se mais a outros.
Este homem tem uma filha solteira de 17 anos de idade que engravidou, apesar dos alertas do pai. Ela me pediu para contar ao pai sobre sua gravidez. Apesar de acostumada a conviver com galera da pesada, sentiu-se temerosa de abrir isto ao pai. Aceitei o pedido com a ideia de ajudar pai e filha a lidarem com uma situação delicada para ambos. Eles moram em cidades diferentes. Para surpresa nossa, ela veio até a cidade onde o pai mora, indo para a casa do namorado que a engravidara, distante da casa do pai, sem avisar sobre sua chegada.
No dia seguinte o atendi e contei a história da gravidez da filha. Ele ficou “passado” e ressentido. Falou sobre os alertas que havia dado à filha sobre isto. Manifestou irritação para com o namorado dela, dizendo que o havia pressionado, no bom sentido, para não fazer besteira com a filha dele. Disse a ele que se ele precisasse, eu poderia ajudá-lo a falar com a filha. Ele ficou com raiva dela, e disse que não iria falar com ela, não a queria ver.
Expliquei que ela sobreviveria sem o apoio dele, mas seria importante o encontro deles. Lembrei a ele que ele sobreviveu aos ataques verbais da mãe “nervosa”, e que, no fundo, sentiu falta de uma mãe carinhosa. Assim, a filha sentia falta de um pai carinhoso agora ao fazer a besteira, como tantas adolescentes hoje fazem: engravidar na hora errada. 
Ele disse-me no momento de raiva: “Não consigo vê-la grávida, solteira, não suporto isso! Só quero vê-la depois que a criança nascer!”. Expliquei que isso não a ajudaria e que poderia ser para ela um tipo de desprezo, e ele sabe como foi doloroso ter convivido com o desprezo afetivo da mãe dele. Ele argumentou: “Mas em que eu ajudaria?”. Quem não recebeu ajuda em horas críticas de quem deveria ter ajudado pode não entender  a importância disso para uma outra pessoa. Completei: “Ajudaria para ela sentir que o pai não a rejeita”. Ele abriu mais sua angústia: “Você acha normal que devo aceitar ela estar grávida?”. Expliquei: “Aceitar é diferente de concordar”. Seguiu-se mais diálogo entre nós, e eu disse: “Entendo que é difícil para você lidar com isso agora!”. De novo ofereci conversarmos juntos, se ele desejasse. Ele ficou calado e foi embora.
Mais tarde fiz contato com ele: “E aí? O que decidiu?”. Custou a responder, disse que iria deitar cedo e “não queria agora tocar no assunto”. Respeitei e não insisti. Ele precisava digerir a tristeza, a mágoa, a frustração, a angústia, a raiva. Disse-lhe: “Bote o joelho no chão, fale com Deus e Ele te ajudará a ajudar sua filha”.
Na manhã seguinte ele me mandou um SMS pelo celular: “Resolvi ver minha filha hoje. Só ainda não sei como vou fazer isso. Estou pensando em como estar com ela”. Era a luta para vencer o próprio eu machucado. “Vou esperar mais algumas horas.” Não vencemos emoções difíceis rapidamente. Há um tempo mínimo para conseguirmos lidar com elas de maneira equilibrada.
Lembrei-o que é difícil lidar com uma situação assim, mas que, como diz a Oração da Serenidade, é possível receber de Deus a serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar, coragem para modificar as que podemos, e sabedoria para distinguir umas das outras. 
Mais tarde ele me mandou a seguinte mensagem, que me deixou maravilhado por ter vindo de uma pessoa chamada “paciente escolhido”, tido pela família como “a ovelha negra”. Ele escreveu: “Eu tenho carinho por minha filha. Não quero que ela vá embora sem a gente se ver. Resolvi deixar o amor na frente da decepção”. Me emocionei ao ler isso! E pensei comigo mesmo: “Que atitude grandiosa!”. Você consegue deixar o amor na frente da decepção e agir com bondade? Os parentes “saudáveis” dele conseguem isto? 

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César Vasconcelos de Souza

Cesar Vasconcellos de Souza

Saúde Mental e Você

O psiquiatra César Vasconcellos assina a coluna Saúde Mental e Você, publicada às quintas, dedicada a apresentar esclarecimentos sobre determinadas questões da saúde psíquica e sua relação no convívio entre outro indivíduos.

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