Dor emocional do passado: uma nova paixão resolve?

sábado, 31 de julho de 2010

Não é raro ao falar com meus pacientes, num certo momento da entrevista, para darmos uma olhada no passado deles em busca de algo que possa nos ajudar a entender o sofrimento atual que motivou a consulta, dizerem: “Já sou adulto, o passado já foi, não interfere em nada no meu presente.” Não interfere? É possível zerar dores do passado para que não mais perturbem hoje sem examiná-las, tomar consciência delas e aprender a lidar com elas de maneira saudável?

Geneen Roth conta em seu livro Carência Afetiva e Alimentação (p.169 à 171, Editora Saraiva) sobre uma amiga que era deixada pelo pai sozinha na porta de casa quando criança, e uma vizinha cuidava dela. Ficou sem ver a mãe por mais de 35 anos. Quando a vizinha ficava impaciente com ela, colocava a menina com as mãos amarradas para trás e enchia sua boca com ameixas secas para ficar quieta. Ela sentia muita raiva do pai e ao crescer apesar de ter sempre contato com ele, geralmente esquecia do aniversário dele, não retornava seus telefonemas para ela, ao marcar encontros com ele atrasava sempre mais de uma hora, sempre argumentando: “Depois do que ele fez comigo ele não tem o direito de reclamar do que eu faço.”

Em tratamento psicológico ela ouviu de seu terapeuta que havia muita dor guardada dentro dela. E logo retrucou dizendo: “Quero pensar no meu futuro e não no meu passado.” Nos atendimentos surgiu que ela tinha muita dificuldade para falar do passado com o pai e que sentia muita raiva dele, mas uma raiva como os discos antigos de vinil que quando arranham ficam repetindo: “Depois do que meu pai me fez, depois do que meu pai me fez, depois do que meu pai me fez.”

No seu terceiro casamento está apaixonada pelo novo marido e crê que nunca sentiu tão bem. Criticou e ironizou o terapeuta que lhe havia dito que ela tinha coisas mal resolvidas do passado que poderiam influenciar seu presente. Disse: “O que aquele psicólogo sabia, afinal de contas? Quem diz que preciso examinar meu passado?”

A verdade é que se você nunca para para examinar se e como seu passado influi negativamente no seu presente e pode perturbar o futuro, é bem provável repeti-lo. Cientistas de psicologia de casal afirmam que dos que se divorciam sem dar tempo para entender onde, como, por que falharam em seu casamento, a fim de evitar repetir os mesmos erros num novo relacionamento, 60% separam a segunda vez, e 70% a terceira vez.

O novo casamento apaixonado desta mulher não resolveria a dor da infância dela, a qual continuava trancada no seu inconsciente. Ela muito provavelmente teria explosões de raiva quando seu marido fizesse algo que tocasse na ferida inconsciente, quando iria falar tudo o que queria ter dito quando estava com a boca cheia de ameixas e as mãos amarradas para trás. Ao seu esposo atrasar para chegar em casa, isto poderia trazer à tona sensações dolorosas de abandono (ligadas ao pai) e reagir de maneira exagerada com o marido, que não entenderia nada. Poderia ir dormir irada e repetindo: “Depois do que ele me fez, depois do que ele me fez, depois do que ele me fez.” Mesmo crendo ter encontrado o “amor da minha vida” no novo casamento.

Não dá para ter relacionamentos curadores no presente sem desejar e buscar a cura da dor do passado. Para obtê-la é preciso crer que ela é possível e desejá-la mais do que ter medo de sentir raiva, dor e tristeza. Desejar isto com decidida vontade de amadurecer como ser humano e tomar atitudes práticas nesta direção.

Dr. Cesar Vasconcellos de Souza

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Saúde Mental e Você

O psiquiatra César Vasconcellos assina a coluna Saúde Mental e Você, publicada às quintas, dedicada a apresentar esclarecimentos sobre determinadas questões da saúde psíquica e sua relação no convívio entre outro indivíduos.

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