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Cultura e compulsão
O mundo está compulsivo, a sociedade doente. Os caminhos da saúde estão quase apagados na cultura que pressiona para que o doentio se torne o desejado em nome de prazer e conveniência. “Vivemos numa cultura inclinada à compulsão em que a desorientação de um dependente não chama a atenção.”, Patrick Carnes, Ph.D., “Isto não é amor”, Edit. Best Seller, p.85. Veremos a seguir alguns aspectos culturais ligados às dependências segundo o profundo trabalho do Dr. Carnes na obra citada.
1) Nossa cultura é orientada pela conveniência—comida congelada, serviços feitos de dentro do carro (drive through), semelhante ao que o dependente busca, ou seja, uma “rápida solução” para reduzir sua ansiedade.
2) Nossa cultura enfatiza a tecnologia sofisticada—endeusa a ciência na fantasia de que a tecnologia resolve tudo. Esperamos que algum cientista descubra a pílula mágica ou uma cirurgia para doenças ligadas ao ruim estilo de vida sem ter que mudá-lo.
3) Nossa cultura busca entretenimento e escapismo—foge da busca do sentido das coisas. “Os filmes, programas de televisão, romances e revistas contribuem para a falta de significado, que o sociólogo Durkheim chamou de anomia quando se referiu ao estado de carência de sentido que antecede ao suicídio.” Idem, p.86.
4) Nossa cultura tem sofrido grandes alterações de paradigma—Isto significa uma confusão de valores que faz a vida mais difícil.
5) Nossa cultura sofre com a desagregação familiar—Nos Estados Unidos de cada 3 casamentos, 2 terminam em divórcio. No Brasil (2003) registrou-se cerca de 750 mil casamentos e 240 mil divórcios e separações judiciais, isto é, em cada 3 casamentos em 2003 oficialmente registrados, um terminou, ou 30 em cada 100 foram desfeitos. Nos EUA 54% das mulheres têm dupla jornada (serviço em casa e fora). Os filhos ficam em situações de cuidados a desejar, sem falar em mães solteiras imaturas para cuidar de si mesmas quanto mais de uma criança. No Brasil deve ser mais que 54%. Resultado: profundos sentimentos de abandono, que é a parte central do desejo compulsivo.
6) Nossa cultura sente a perda da comunidade—Nos EUA executivos mudam de emprego, em média, a cada 18 meses. Famílias mudam de lugar em média a cada 3 anos. Sociólogos afirmam que normalmente são necessários 3 anos para que uma família possa obter uma rede de apoio na comunidade. O rompimento disto produz isolamento, que induz a abusos de crianças, agressão e dependências.
7) A nossa é uma cultura de alta tensão—pressão no trabalho, vários empregos, ameaças de demissão, competição, a mídia enfocando e enfatizando as desgraças sociais, tudo resultando em uma ansiedade crônica além dos estresses da vida pessoal.
8)Nossa cultura é de exploração dos outros—capitalistas oprimem os trabalhadores e geralmente são cínicos diante dos sofrimentos alheios. “Mesmo se não formos as vítimas, nossa experiência equivale à da criança que cresceu numa família abusiva, mas não sofreu abusos pessoais. A permanência no ambiente gera desconfiança, que alimenta a dependência.” Idem, p.87.
9) Nossa cultura nega limitações—quando você nega seus limites, está fora da realidade, a saúde mental sofre e as dependências (drogas, etc.) crescem quando não há limite.
10) Nossa cultura está compulsiva—pessoas trabalham sob efeito de drogas para manter o pique e a ousadia. Nos EUA—com mais de 300 milhões de pessoas—calcula-se que existam 131 milhões de compulsivos ou pessoas próximas afetadas. “Quando mais da metade da população está envolvida com dependências, as normas compulsivas passam a ser o centro da experiência cultural.” idem, p.87.
Nossa cultura apoia a dependência, por isso ela não é somente uma questão médica (neuroquímica) e situações de família (psicológica). Há uma ecologia social envolvida que é a cultura em nosso mundo doente.
A recuperação envolve decisões pessoais, políticas e sociais. Requer humildade para aceitar impotências e limites, adiar gratificações, desenvolver um significado valioso para a vida, coisas difíceis para indivíduos e cultura dependentes que querem prazer já.
A vida de dependentes é muito arriscada porque eles invadem limites, negam fraquezas, se sentem semideuses. Ignorar os próprios limites é a ruína de pessoas. Quanto mais tempo você se sente invulnerável, mais retarda a recuperação. Pedir ajuda significa admitir a impotência diante da obsessão e/ou da compulsão. Como alguém que se sente semideus pode admitir ser impotente? Faz profundo sentido o 1º. Passo dos 12 sugeridos pelos Alcoólicos Anônimos: “Admitimos que éramos impotentes diante do álcool—que tínhamos perdido o controle de nossas vidas.” Admitir a doença é o primeiro passo para a recuperação da pessoa e da cultura.
Cesar Vasconcellos de Souza
Saúde Mental e Você
O psiquiatra César Vasconcellos assina a coluna Saúde Mental e Você, publicada às quintas, dedicada a apresentar esclarecimentos sobre determinadas questões da saúde psíquica e sua relação no convívio entre outro indivíduos.
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