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Convivendo com a perda
Desejamos o ideal. Ideal sobre nós mesmos e sobre as outras pessoas. Numa paixão romântica a pessoa apaixonada forma uma imagem em sua cabeça sobre a outra por quem se diz apaixonada, sendo que esta imagem pode ser, e em geral é, bem diferente do que a pessoa alvo da paixão é. Geralmente nos apaixonamos por um tipo de pessoa que está em nossa imaginação, e não necessariamente na realidade do outro. Nos apaixonamos pelo ideal que sonhamos.
Desejar o ideal não é errado. O desafio é o que você fará ao ir descobrindo que esta pessoa com quem convive não é como você sonhava. E agora? Se é um relacionamento matrimonial, qual será a solução? Separar? Ter um “caso” por fora?
O outro com quem você convive também pode sofrer a desilusão, porque com o passar do tempo foi vendo que você não era tudo o que ele/ela sonhava e desejava que fosse. Será que existe alguém ideal lá fora?
Se pensarmos no amor e no amar, será que amor é quando o outro é tudo para nós, quando é a pessoa ideal que queríamos? Ou será que amar envolve aceitar o não ideal em nós e nas outras pessoas?
Lidar com a perda do ideal não é fácil. Conviver com a falta daquilo que você sonhava encontrar no outro é difícil. Mais difícil ainda quando você saiu de uma infância sofrida e esperava que a vida lhe desse uma espécie de compensação num outro relacionamento na vida adulta. A vida faz isto?
Nós somos parciais. Não sabemos tudo. Não podemos tudo. Não somos tudo. Não somos deuses. Não podemos ser tudo para o outro. O outro não pode ser tudo para nós. Há uma perda, uma falta em cada um de nós em nossos relacionamentos. Não aceitar isto é viver na ilusão e falsa expectativa de encontrar o príncipe ou a princesa perfeita.
O que você pode ser para o outro? O que de bom pode oferecer? Dá para ter cortesia, palavras não agressivas, atitudes compassivas, ternura, mesmo na ausência de um sentimento de grande amor? Se você sente que não ama mais uma pessoa com quem convive ou convivia, pelo menos pode tratá-la bem, não pode?
As compulsões podem ter raízes na dificuldade da pessoa compulsiva aceitar seu vazio, sua desilusão, desidealização e falta. Compulsões servem para anestesiar a dor da falta. Lidar à seco com o vazio, com a angústia, é bem difícil. As crianças conseguem isto melhor que nós adultos. Afinal, você já viu crianças lançando mão de bebida alcoólica, drogas ilícitas, fuga no trabalho, uso de medicamentos controlados, pornografia, vida consumista, para fugir da dor mental, da angústia?
As crianças têm angústia e tristeza como as pessoas de mais idade. Elas precisam fazer uma ginástica mental para lidar com as frustrações que os pais e as mães causam nelas e manter a imagem idealizada do pai e da mãe até certa idade.
Paradoxalmente, quando começamos a aceitar nossa falta, nossa perda sem revolta, sem fugir dela, algum alívio pode surgir. E também podemos começar a pensar e decidir tratar melhor as pessoas apesar de nossa desilusão. Não é isso afeto?
Trate bem as pessoas. Seja gentil no trânsito. Ofereça ajuda. Decida agir com cortesia. E faça estas coisas independente de como você é tratado pelas pessoas com quem convive. Esta é uma escolha que você pode fazer e pode lhe causar bem estar, mesmo na presença da perda do que você sonhava existir no outro e que não existe.
Cesar Vasconcellos de Souza
Saúde Mental e Você
O psiquiatra César Vasconcellos assina a coluna Saúde Mental e Você, publicada às quintas, dedicada a apresentar esclarecimentos sobre determinadas questões da saúde psíquica e sua relação no convívio entre outro indivíduos.
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