Alguma coisa vai faltar

quarta-feira, 06 de abril de 2016

Somos incompletos. A autora Pia Melody, no livro “Enfrentando a codependência afetiva”, disse que nós seres humanos somos perfeitamente imperfeitos. Perfeito. É isso. Todos estamos quebrados (“Weall are broken.”), como me escreveu numa troca de ideias por e-mail, um psiquiatra cristão de Harvard com quem mantenho contato.

 O que isto significa? Significa, entre outras coisas, que não podemos encontrar em outra pessoa tudo o que gostaríamos de achar para nos satisfazer, para sermos felizes do que depende desta outra pessoa. E outra verdade tão importante quanto esta, da qual geralmente não gostamos de pensar e encarar é: nós também não podemos satisfazer uma outra pessoa em tudo o que ela deseja de nós, seja pai, mãe, filho, filha, esposo, esposa, etc.

E agora? Como lidar com esta coisa que falta? Por um certo ângulo, a psicoterapia é uma ajuda humana profissional que tenta auxiliar o cliente a lidar com esta falta e com as consequências dela no comportamento pessoal. Os sofrimentos mentais têm, em geral, como causa esta falta e as dificuldades em lidar construtivamente com ela.

Para algumas pessoas a falta, o buraco no peito, é tão doloroso que elas regridem, encolhem, se tornam depressivas, ou agressivas, ou irônicas, dependentes químicas, compulsivas por qualquer coisa, ou até entram numa psicose.

Pense no casamento, por exemplo, que é um tipo de relacionamento humano com tantos desafios, dificuldades, porque são duas pessoas diferentes que se unem para viver juntas, talvez vindas de famílias de origem com funcionamento diferente, cada uma com desejos diferentes, inseridas na realidade de modo diferente, uma mais melancólica, outra mais colérica, uma dependente, outra independente, uma autoritária, outra mansa, etc. Como ter harmonia com tanta diferença?

Podemos dizer que há três dimensões na vida conjugal: diálogo, romance e sexualidade. Um cônjuge pode ser mais sexualizado (genitalmente) do que outro. Uma esposa pode ser dependente de romance e seu marido pode ser obcecado por sexo. Um pode ser muito autoritário enquanto que o outro passivo. O casamento reúne não só duas pessoas diferentes vivendo diariamente juntas, mas dois inconscientes que estão se relacionando. Um pode não saber mesmo por que faz o que faz, ou não faz o que não faz, na vida do casal. E agir por motivos inconscientes pode ser realmente fonte de muito conflito.

            Mas se considerarmos um casal razoavelmente bem entrosado, mesmo assim, um pode ter a tendência de ser mais atraído para aspectos românticos do relacionamento enquanto que o outro pode preferir o diálogo. Em outro casal, um pode ter preferência pela vida sexual, e outro pelo contato com familiares. Um pode ser extrovertido gostando de ter sempre gente em volta, enquanto que o outro pode ser introvertido, preferindo menos gente perto.

Quando a pessoa não aceita que o outro não pode ser tudo para ela, não é incomum ela fazer besteira na vida para tentar o preenchimento pleno das suas necessidades, devido à dificuldade de lidar com a falta. Lidar com a falta é difícil para todos nós. Não é tarefa fácil aprender isto, porque “isto”, a falta, gera angústia. E angústia é o oposto de prazer.

Existe vida sem angústia? O que existe é a negação da angústia. E uma forma de negá-la é ficar mantendo a ideia, o pensamento, de que “lá fora deve existir alguém que vai preencher tudo em mim.” SörenKierkegaard, filósofo dinamarquês, em seu livro “O Conceito de Angústia”, escreveu que “aquele que aprendeu a lidar com sua angústia, aprendeu o mais importante”.

Quanto mais cedo uma pessoa aprende isto, menos ela entrará em sofrimentos mentais importantes, menos ela ficará vivendo conflitos na família e conjugais. Porque ela irá parar de ficar cobrando do outro uma perfeição e completude que nem ela mesma consegue ser e dar. Ela ficará com o sofrimento natural desta vida, com a angústia existencial, sobre a qual Jesus disse que todos a teriam (“No mundo tereis aflições”, João 16:33). Alguma coisa vai faltar, mas aceitar progressivamente a angústia de forma positiva pode, paradoxalmente, aliviar a pessoa e o relacionamento. 

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César Vasconcelos de Souza

Cesar Vasconcellos de Souza

Saúde Mental e Você

O psiquiatra César Vasconcellos assina a coluna Saúde Mental e Você, publicada às quintas, dedicada a apresentar esclarecimentos sobre determinadas questões da saúde psíquica e sua relação no convívio entre outro indivíduos.

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