Colunas
Seresta
Eles fizeram um pacto: viver uma noite de serestas, curtindo as melodias do passado com seus versos poéticos e harmonias simples.
— Entra, pode entrar, a casa é sua.
Sentaram-se na sala e logo logo jogaram um xale sobre as pernas. Era um frio de maio, daqueles doídos.
— Toma um chocolate, é bom, dá pra esquentar o corpo e a alma.
Ele levanta calmamente, põe um CD no som, e a voz doce e afinada do Orlando Silva se espalha pela sala, envolvendo de saudade aquele momento sublime.
"Tu és divina e graciosa estátua majestosa...” E os dois ouviam num respeito e silêncio profundo a voz que inspirou Robertos, Caubis, Moacir Franco e tantos mais.
— Mais um chocolate.
Os passos mansos e cadenciados foram até o som e uma nova surpresa aconteceu.
"Cai a tarde, tristonha e serena em macio e suave langor.”
— Sabe quem é? É Augusto Calheiros, a patativa do norte, devido ao seu sotaque nordestino.
E a canção foi ouvida até o final, com a respiração ofegante dos dois que fizeram um pacto, ouvir e se deliciar. Uma leve chuva escorria pela janela, semelhante às primeiras lágrimas que rolavam dos dois seresteiros, que ouviam e balbuciavam entre dentes os versos da velha canção. Da cantiga de ninar dos velhos tempos de trovador em busca de caminhos artísticos.
— Mais um chocô?
Ele já brincava se deliciando com a audição inusitada da seresta caseira. Sem auditório, sem aplausos, sem nada a perturbar a concentração dos dois que fizeram o pacto: curtir a saudade em todos os seus tons, entranhados na alma e no coração. Um marcapasso marcava o ritmo das canções.
Ele, o Genserico, o primeiro deles, chega até a janela, abre os braços, olha pros caras e começa a cantar:
"Será que o amor é isso, será que amar é assim?”
É o próprio Carlos Galhardo, inconformado e cantando o seu sucesso maior. O outro deixa a chuva molhar o seu rosto, confundindo com a lágrima de um momento simples, mágico, de amizade, de respeito à música que tanto adoram. Genserico dá um adeus e o carro em ponto-morto vai descendo a ladeira calmamente. Ele vai sonhar que um dia cantou na Rádio Nacional este sucesso. Depois, a vida lhe conduziu por outros caminhos não artísticos. Genserico conheceu Nair e constituíram uma família que vive para o trabalho. Todos juntos num só pensamento.

Jorginho Abicalil
Recado de Jorginho Abicalil
Como era Friburgo antigamente? O que o tempo fez mudar? O que não mudou em nada? Essas e outras questões são abordadas, aos fins de semana, na coluna “Recado de Jorginho Abicalil”, onde o cronista relata a Nova Friburgo de outros carnavais.
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