Seresta

sábado, 06 de dezembro de 2014

Eles fizeram um pacto: viver uma noite de serestas, curtindo as melodias do passado com seus versos poéticos e harmonias simples. 

— Entra, pode entrar, a casa é sua.

Sentaram-se na sala e logo logo jogaram um xale sobre as pernas. Era um frio de maio, daqueles doídos.

— Toma um chocolate, é bom, dá pra esquentar o corpo e a alma.

Ele levanta calmamente, põe um CD no som, e a voz doce e afinada do Orlando Silva se espalha pela sala, envolvendo de saudade aquele momento sublime. 

"Tu és divina e graciosa estátua majestosa...” E os dois ouviam num respeito e silêncio profundo a voz que inspirou Robertos, Caubis, Moacir Franco e tantos mais.

— Mais um chocolate.

Os passos mansos e cadenciados foram até o som e uma nova surpresa aconteceu.

"Cai a tarde, tristonha e serena em macio e suave langor.”

— Sabe quem é? É Augusto Calheiros, a patativa do norte, devido ao seu sotaque nordestino. 

E a canção foi ouvida até o final, com a respiração ofegante dos dois que fizeram um pacto, ouvir e se deliciar. Uma leve chuva escorria pela janela, semelhante às primeiras lágrimas que rolavam dos dois seresteiros, que ouviam e balbuciavam entre dentes os versos da velha canção. Da cantiga de ninar dos velhos tempos de trovador em busca de caminhos artísticos.

— Mais um chocô?

Ele já brincava se deliciando com a audição inusitada da seresta caseira. Sem auditório, sem aplausos, sem nada a perturbar a concentração dos dois que fizeram o pacto: curtir a saudade em todos os seus tons, entranhados na alma e no coração. Um marcapasso marcava o ritmo das canções.

Ele, o Genserico, o primeiro deles, chega até a janela, abre os braços, olha pros caras e começa a cantar:

"Será que o amor é isso, será que amar é assim?”

É o próprio Carlos Galhardo, inconformado e cantando o seu sucesso maior. O outro deixa a chuva molhar o seu rosto, confundindo com a lágrima de um momento simples, mágico, de amizade, de respeito à música que tanto adoram. Genserico dá um adeus e o carro em ponto-morto vai descendo a ladeira calmamente. Ele vai sonhar que um dia cantou na Rádio Nacional este sucesso. Depois, a vida lhe conduziu por outros caminhos não artísticos. Genserico conheceu Nair e constituíram uma família que vive para o trabalho. Todos juntos num só pensamento. 

TAGS:
Jorginho Abicalil

Jorginho Abicalil

Recado de Jorginho Abicalil

Como era Friburgo antigamente? O que o tempo fez mudar? O que não mudou em nada? Essas e outras questões são abordadas, aos fins de semana, na coluna “Recado de Jorginho Abicalil”, onde o cronista relata a Nova Friburgo de outros carnavais.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.