Sororidade

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Para hoje eu havia pensado em um texto feliz em que pudéssemos pensar sobre como pequenos gestos de carinho podem surtir efeitos grandiosos na esfera da afetividade. Acontece que mais uma mulher morreu nas mãos de um homem violento. E não podemos nos calar. Não podemos ser indiferentes a essa dura constatação. Muitas mulheres estão tendo sua vida ceifada diariamente e casos brutais nos trazem a uma reflexão inevitável, que deveria realmente sair do campo do pensamento e se transformar em luta contínua, incessante.

Mais uma mulher foi vítima da pessoa em quem mais devia confiar na vida. Aquela pessoa que lhe prometera "amar e respeitar, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, por todos os dias de sua vida." Mais um caso estarrecedor de violência contra todas as mulheres que traz à tona discussões acerca do feminicídio e nos relembra que uma parcela significativa do que entendemos por humanidade está carente justamente de humanidade. Mais covardia, maus tratos e violência de todas as ordens que nos saltam aos olhos e nos provocam mais tristeza e comoção.

Fica outra vez evidente que o agressor não necessariamente tem "cara de mau" e sangue visível nos olhos. Não está apenas nos becos escuros dos quais aprendemos a fugir desde a infância. Não transparece sua pior versão no primeiro encontro. Ele pode estar cruzando com você pelas ruas. Morar em seu condomínio. Frequentar os mesmos restaurantes. Cumprimentar no trabalho. Participar do seu seleto grupo de amigos.  Pode estar dentro do lar, dividindo a cama com você. E essa realidade aterrorizante pela qual tantas mulheres passam é absolutamente assustadora sobretudo e por razões óbvias, para as outras mulheres.

Ao assistir aos recentes vídeos em que a advogada Tatiane Spitzner foi nitidamente agredida pelo marido senti o estômago embrulhar. As lágrimas escorreram. Um assombro terrível me invadiu e eu não consegui dormir. Senti inclusive culpa por ter assistido às cenas reais de terror. Uma sensação de impotência, medo, injustiça, dó. Uma tristeza que é real e está presente de forma latente em nossa sociedade, mas que muitas vezes precisa ser vista para que seja efetivamente lembrada.

Invariavelmente, conversei com outras mulheres próximas sobre o ocorrido e o impacto foi generalizado. Todas, absolutamente estarrecidas e compadecidas, concluindo que o inimigo pode mesmo morar ao lado e que não podemos nos calar. Quantas mulheres e homens são vítimas cotidianas da violência de homens? Não se trata de um sexismo às avessas. É realidade nua e crua, nítida aos olhos de qualquer um que queira enxergar. Muitas mulheres são agredidas por serem mulheres. E os ataques à integridade física e moral podem ser - e são - degradantes.

Os atos de hostilidade e as provocações não resultam sempre no fim da vida delas. Felizmente. Mas deixam marcas e feridas abertas em sua identidade que deveriam nos envergonhar enquanto sociedade. Nossa omissão merece nos penalizar internamente por cada vez que pudemos ser úteis para ajudar alguém e não o fizemos por qualquer razão.

Se eu tenho a sorte de fazer parte de uma parcela privilegiada que individualmente recebe amor e respeito dos homens, eu igualmente faço parte de um todo de mulheres dentre as quais inúmeras são agredidas psicologicamente e fisicamente o tempo todo. Então o problema é meu também. A luta me pertence. Pertence a todas nós.

Muito se tem falado sobre “sororidade”, sobre o sentimento de empatia que deveria impregnar a cada uma de nós e sobre a união entre as mulheres que podem ser a aliança de que muitas precisam para terem força e caminho para e reerguerem e se libertarem. Em proporção ainda maior do que tem sido propagada a sororidade, ela tem que ser sentida. E praticada. A união faz a força, sim.

Reflexão da semana:

“(...) O problema não é sobre ser humano, mas especificamente sobre ser uma mulher. Por séculos, o mundo dividiu os seres humanos em dois grupos e então excluíram e oprimiram um grupo. É justo que a solução para o problema leve isso em consideração”.

Chimamanda Ngozi Adichie

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Paula Farsoun

Com a palavra...

Paula é uma jovem friburguense, advogada, escritora e apaixonada desde sempre pela arte de escrever e o mundo dos livros. Ama família, flores e café e tem um olhar otimista voltado para o ser humano e suas relações, prerrogativas e experiências.

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