Carta para Mia Couto

sexta-feira, 29 de março de 2019

Mia Couto, li suas palavras. Compadeci-me com cada uma delas. Transportei-me à África. Parte de meu coração se transmudou para a sua região. Vi sua terra natal, Beira, em Moçambique, sangrando em meio àquele marrom devastado pela catástrofe. E sofri. Um furacão de dor. Deu para sentir.

Querido escritor, coloquei-me em seu lugar e devo assegurar: eu te entendo. Sei o que quis dizer quando manifestou estar quase tão destruído quanto a sua cidade. Já me senti assim. Em 2011, a minha cidade, Nova Friburgo, na Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro, também sangrou. As montanhas por aqui derreteram. Os rios extravasaram. Muita gente morreu. Muito de nossa terra se perdeu. Foi triste. Um sofrimento coletivo sem precedente nos assolou. Foi insuportável. Doeu muito. E ainda dói às vezes. Ainda há traumas de todas as ordens. Confesso que as imagens de sua terra depois do “Idai” embaralham meus nervos. Algo em mim ainda chora.

Mia Couto, é difícil de suportar. Pessoas sensacionalistas que nunca se importaram conosco começam a parecer como urubus sobre a carniça. Fotos com os destroços passam a ter seu “valor”. Contabilizam com muita facilidade quantos irmãos se foram. Sabemos, que muito do que nos chega em termos de apoio é da “boca para fora”. Contudo, ao mesmo tempo, ficamos surpresos e impressionados com a solidariedade que nosso próprio povo manifesta. Não sei se isso acontece com vocês. Acredito que sim. Muito do que somos por aqui tem origem nesse grande continente aí. De alguma forma, somos uma parte de vocês, é verdade.

Não nos iludamos, promessas nessas horas, podem não se concretizar no futuro próximo. Talvez, nunca. Por aqui, alguns prometeram a reconstrução: e não devo negar, promessa nem sempre é dívida. Dizem que alguns interesses particulares estiveram bem distantes aos das vítimas da tragédia. É o que dizem. É triste, mas se aí for como aqui, muitas pessoas acabam por enriquecer às custas desse rastro de desgraça. Dói muito, é a realidade, mas ao mesmo tempo, fomentamos sentimentos dos quais por vezes só nos aproximamos na teoria. Espírito de justiça. Compaixão. União. Reciprocidade. Resiliência. Capacidade de superação. Empatia. Amor incondicional.

Prezado escritor, você nunca lerá esta carta, eu sei.  Sou uma fã de suas obras que está sentindo profundamente as enormes perdas de vidas humanas e de tudo mais envolvido. É imensurável. Sabemos que catástrofes na África não rendem tanta visibilidade por aqui. Sei lá, como se o impacto fosse um tanto menor. É estarrecedor. Cadê a compaixão de toda gente? Não por culpa deles, mas muitos ainda não sabem o que vocês passam aí. Logo vocês, nossos irmãos.  Mas eu sei e sinto muito. Registro para o universo, por aqui, que a dor de vocês me importa.

Se servir de alento, devo antecipar que seu desespero uma hora vai passar. Ou amenizar. As coisas acharão um jeito de se ajeitarem novamente, da forma como puderem, como conseguirem. Não, não voltarão a ser como antes. Feridas profundas não deixam de ser feridas, mas um dia serão feridas cicatrizadas. Estão ali, são notadas, incomodam, mas provocam menos dor.

A natureza tem um poder magnífico e o verde voltará a ser verde e os iludirá ao apresentar um cenário paradisíaco, aparentemente intacto, como se nada tivesse saído do lugar. Talvez não veja mais brilhos nos olhos de muitas pessoas por um bom tempo – ou nunca mais. Mas certamente se deparará com uma resiliência invejável. Verá gente feliz de novo. Talvez. Jamais será como antes, porque as perdas humanas são irreparáveis, imensuráveis. Apagar as marcas da tragédia de sua terra e seu povo, não dá mais. Mas ainda assim, acredito que coisas boas ainda poderão vir. O amor é poderoso. É ele quem nos salva no final das contas.

Daqui de Nova Friburgo, olho para vocês por telas que de vez em quando informam sobre os mais de mil mortos por força do ciclone e de alguma maneira, acredite, me teletransporto até aí - tenho meus caminhos! E se você acreditar em energia, asseguro que daqui de onde estou, há um povo solidário e que acima de tudo, entende o que estão passando. E torce por vocês.

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Paula Farsoun

Com a palavra...

Paula é uma jovem friburguense, advogada, escritora e apaixonada desde sempre pela arte de escrever e o mundo dos livros. Ama família, flores e café e tem um olhar otimista voltado para o ser humano e suas relações, prerrogativas e experiências.

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