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Confissões a Almodóvar
Eu nasci onde havia de nascer. Onde se nasce, inicia-se a construção da pessoa. Não que isso determine de que material serão esses alicerces. Nem que a essência primária produzirá todo o resto dos dias. Estamos em evolução enquanto ebulição. Mas o lugar que surgimos, por óbvio - seu ambiente e lógica própria - nos permite ou não. Talvez, tenha eu confrontado a realidade imposta a mim para ser quem deveria ser.
Desde muito cedo eu sabia - em parte - o que queria, mesmo sem ter o conhecimento do que se tratava. A imaturidade ou o desconhecimento nos faz sonhar. Às vezes, sonhos que nos prendem há missões sofridas. Mas sonhos são lindos e nos impulsionam a ir além de onde surgimos e do que muitos poderiam supor. Nunca fui aposta certeira.
Lembro dos poucos brinquedos de minha restrita infância, a maioria, daqueles pequenos, de plástico, da antiga fábrica Mitroplast. Os jipes coloridos ou o cachorrinho amarelo que se animava quando apertava o botão e que fazia o bichinho se assanhar através das sutis cordas de elástico. Tio Augusto, vindo de São Paulo, trouxe um pequeno Snoopy de pelúcia pra mim. Era meu brinquedo preferido e o mantive até quase meus nove anos.
Meus pais trabalhavam fora, o dia inteiro, e, por segurança exacerbada, eu não podia brincar com os meninos da rua. Tampouco podia ligar a TV de tubo. Desobedecia. Mas sabia a hora certa de desligar, pois meu bravo pai, mal botava os pés na sala e já estava com as mãos no transformador para medir a temperatura. Quase sempre dava certo. Quando chegava minutos antes, minha previsão frustrada fazia o cinto cantar.
Minha infância solitária me fez criar mundos. Inventei um país (Blindar) com história, campeonato de futebol e eleições. Criei uma escola em que eu era professor, diretor e aluno. Inaugurei uma TV (Bibilhete), onde além de programador, era apresentador. E entre lavar fogões no quintal de casa para ajudar o meu pai no sustento da família, encontrei, sem saber, meu primeiro amor. Nem sabia que era o primeiro e só fui perceber recentemente, depois dos 30.
Fui ser garoto de estacionamento, vendedor de calçados... O trabalho e a escola ocupavam meu tempo. Não pensava em qualquer outra coisa. Uma adolescência roubada por mim mesmo. Não foi o trabalho ou os estudos ou os sonhos de transformar uma cidade que tomaram de mim a bela fase da vida. Fui eu mesmo. Por medo, desconhecimento, fraqueza ou por influência de um mundo meu em que eu simplesmente não me permitia. Veio a primeira paixão consciente e fui um louco apaixonado, descobrindo o meu exagero e drama.
Minha imaturidade sequer permitiu que eu desse um beijo naquela que nasceu para amar e ser amada. Foram três anos de paixão, amor platônico é doloroso, mas ensina a ser poeta. E, assim, de onde vim, dos meninos pobres do morro, sendo ainda mais exceção a cada passo conquistado, fui me auto sabotando ao ponto de esquecer meu primeiro amor que morava na rua do lado, de fundos para a minha casa. Tinha cheiro de biscoito amanteigado.
O crescimento nos ensina que só o amor próprio pode gerar amor de verdade no outro. A vivência nos mostra que a liberdade só pode ser experimentada, quando de fato queremos ser livres. E aí, a verdade não é uma questão de se mostrar verdadeiro para a sociedade, mas para si mesmo, para o seu Deus, para a minha fé, que determina: seja feliz! Só sendo luz se pode iluminar outros. Só sendo entregue se pode sonhar em se entregar à causa de um mundo melhor.
Eu nasci onde tinha que nascer. Nada mudou quanto à minha história, a não ser o meu olhar. Nada muda para ninguém, a não ser por suas vivências e trocas. Só percebi a existência do meu primeiro amor agora, amor de quando eu era apenas um menino com a maior ingenuidade que um menino pode ter. Agora, sou homem livre que nunca gostou de mentir e não mente mais nem para si mesmo.
Palavreando
Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.
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