Chave

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Se tudo que fizesse da vida eu escrevesse num diário, não conseguiria, pela minha indisciplina. Pela natural falta de criatividade também. O que não é uma exclusividade minha, afinal, é coletiva essa incapacidade de criar todos os dias, que mereçam ser lidos. Somos colecionadores de mesmices, ainda que seja consenso que figurinha repetida não complete álbum.

A vida é em atos. Considero difícil e até sacrificante parar o que estou fazendo para escrever o que penso. Mas também sei que depois não lembrarei o que queria dizer. Não adianta decorar para escrever depois. Vem e vai, rapidamente. É como se uma entidade assumisse meu corpo. Se não aproveito sua presença, perco o que deveria dividir.

Tenho natureza, egoísta, como todos. Mas tenho também ambição de não ser e ao tê-la sou igualmente egoísta. Odeio tanto quanto cativo meu ego. Meu ego produz libertação de mim mesmo. Liberdade. De meus textos, de minhas convicções. Não são meus os meus pensamentos. É construção longínqua dos meus antepassados até chegar ao mais antigo dos antepassados que nos fazem, eu e você, de certa forma, parentes. 

Somos tão iguais em sangue, carne, osso e expectativas. Eu não entendo a existência do preconceito. Entendo ainda menos o crescimento do preconceito em tempos como os nossos em que já descobrimos tanto. A evolução parece nos retroceder, quando o conhecimento nos deveria fazer mais irmãos.

E é assim mesmo. As misturas de ideias se aglomeram, às vezes mais organizadamente, outras menos. Talvez como o universo que veio do caos, do Big Bang. Tem muito do que escrevo que acho que já escrevi. E há tão pouco por se criar. Deus é realmente um sujeito muito criativo. Cria pelo homem que interpreta a seu modo a sua criação.

Quem escreve aqui não sou. É uma entidade, santidade, energia… Meus pensamentos são frutos da minha ancestralidade que, possuída ou não, me concedeu esses legados. Serei para o futuro o que o passado me entregou para ser presente. Esse previsível jogo de palavras até que é bonito... 

Já não sou o que fui. A luz atravessa a escuridão de tal forma que sua velocidade pode ser especulada, mas não medida. Jamais adentraremos Buraco Negro para viajar no tempo. O tempo é essa viagem agora que de maneira medíocre mendigamos para se estender ao futuro. 

Escapamos da inocência sem se taxar de ingênuos. Nessa fábula cotidiana, Nelson Rodrigues continua atual. Somos anjos pornográficos que veem a vida pelo buraco da fechadura. Melhor mesmo seria fazer-se chave e entrar para participar da festa. 

O convite? Nascer foi o convite.

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Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

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