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O engraxate
Todo dia um filho vira pai e um pai vira filho
Engraxar seus sapatos era a minha tarefa quando criança. Apenas uma de minhas tarefas. Meu pai era desses que acreditam piamente que o trabalho dignifica o homem. Desde menino me ensinou isso pelas inúmeras tarefas que me ordenava ou mesmo por ter me obrigado a começar a trabalhar antes mesmo de completar os dez. Era a sua crença. Como criança rebelde - discordava. Como homem feito - respeito. Olhando para trás - aceito. Especialmente por saber que meu pai foi o cara mais trabalhador que conheci e acredito que não conhecerei ninguém mais trabalhador que ele - exemplo.
Na vida, só engraxei os meus próprios sapatos e os sapatos Vulcabrás de meu pai. Era uma tarefa semanal deixar brilhando seus três ou quatro pares de sapatos. Todos iguais, da mesma cor preta. Mais do que qualquer outra tarefa, era esta a qual em que eu mais me aplicava. Não gostava de lavar fogões, muito menos capinar a horta ou alimentar as galinhas do nosso extenso terreiro. Mas engraxar os sapatos de meu pai era realmente algo que eu gostava de fazer. Caprichava. Fazia com esmero, sem qualquer expectativa de elogio. Poucas vezes meu pai elogiava. Um homem de poucas palavras. Um pai à moda antiga, talvez pelas tatuagens que a vida lhe fez.
Passava o pano para tirar a poeira, inclusive da sola. Eram duas escovas. Na primeira, espalhava a graxa. Deixava secar um pouco. Posteriormente, com outra escova vinha a parte mágica aos meus olhos de menino - dar o brilho. E, passava a escova fortemente de um lado para o outro, para frente e para trás... Pouco a pouco fazia aquele couro preto ficar um preto azulado, quase um espelho para que meu pai pudesse ver que a grandeza de um homem está no trabalho, mas além do trabalho também.
Hoje, mesmo que quisesse, seria desnecessário engraxar os sapatos do meu pai. Os sapatos Vulcabrás que ele colecionava pares iguais nem existem mais. Meu pai já nem usa mais sapatos. Suas pernas cansadas obrigam aos seus pés sandálias leves de quem já nem pisa mais no chão. O trabalho venceu o homem trabalhador que adorava gastar todos os seus rendimentos na padaria ou no supermercado dando o melhor bem-estar possível à sua família. Exagerava.
Nunca deixava faltar nada. Vez em quando, levava salame fatiado tipo italiano que eu tanto gostava. Era o seu jeito de dizer que se importava comigo. Adoraria voltar a engraxar os sapatos de um pai que pudesse consertar seus fogões e aquecedores a gás. Adoraria dar ao meu pai um par de sapatos Vulcabrás 752 legítimos para que ele pudesse sair caminhando sem a ajuda de ninguém. Sapatos mágicos pretos de brilho azulado para que Nelson, com sua vitalidade de quem gostava de trabalhar de domingo a domingo, pudesse chutar a cadeira de rodas e abraçar todos os seus inúmeros filhos.
Um filho, às vezes, só precisa de um abraço. Hoje, até um berro grosseiro dele, nos faria sorrir. Mas todo dia um filho vira pai e um pai vira filho. E, aprende a desconsiderar mágoas ou pequenas chateações. Começa a entender a lógica de cada pessoa, e, compreendendo acolhe e entende - abraça com a força de quem chega cada vez mais próximo da despedida.
Seus lapsos de memória passam a ser prodígios. Quando frases inteiras saem de sua boca, de nossos olhos também brotam lágrimas. Talvez, amanhã, sequer me reconheça ou me chame pelo nome. Mas sua essência estará ali, intacta, independente dessas façanhas que o tempo faz com as pessoas.
Pode ser que se recupere e volte a ser aquele homem forte que me dava coças de cinto nas minhas tantas malcriações e rebeldias. Pode ser que se recupere e se lembre das dívidas de pequenas quantias que eu pegava emprestado para sair nas noites de sábado quando não tinha um centavo no bolso. Pode ser que pareça milagre, ele voltar à sua completa independência, quando na verdade o maior dos milagres é ser filho de quem sou e me tornar um pouco pai dele no instante em que ele só precisa ser filho.
O nosso corpo é uma máquina que o tempo faz se desgastar até quebrar. Uma história de cansaço árduo, possivelmente pesará, tornando o final ainda mais complicado do que já é. Mas o tempo ou o desgaste do corpo não tiram de nós as nossas maiores heranças: aquilo que ensinamos e nos desdobramos para cumprir. Seu Nelson já cumpriu a função de ser pai; de ser trabalhador neste país de imensas desigualdades que pouco reconhece o esforço do trabalho; de ser homem de grandeza ao seu estilo mais tradicional 752 legítimos.
Meu pai me ensinou que o trabalho dignifica o homem. E, me ensina agora, sem nada dizer, que o tempo é veloz e não devemos perder nenhum momento. O fim é imprevisível, mas o começo e o meio estão em nossas mãos, sobre as nossas asas.
Engraxar os sapatos do meu pai deixou de ser a minha tarefa. Ter meu pai como filho agora é a minha missão.
Wanderson Nogueira
Observatório
Jornalista, cronista, comentarista esportivo, já foi vereador e agora é deputado. Ufa! Com um currículo louvável, o vascaíno Wanderson Nogueira atua com garra no time de A VOZ DA SERRA em Observatório, sua coluna diária.
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