Coração amadeirado

sábado, 15 de outubro de 2016

De repente meu coração se viu madeira. Madeira de lei, mas sem a raiz do dia em que foi árvore. Sem os galhos como complemento. Sem as folhas que um dia carregou. Minhas folhas são papéis brancos que preencho com frases feitas.

De repente me vi um frasista que não consegue completar uma crônica. Ato falho resumir poesias em frases curtas. Seria eu tão objetivo? Meus pensamentos são carregados de subjetividade, ao ponto que se meu coração amadeirado fosse árvore não carregaria frutos, mas sim sementes de imaginação. Minha mente voa no salão e vê o que quase ninguém vê. E isso não me torna especial. Anormal seria mais apropriado.

De repente a intensidade me escapuliu e o que me veio foi um estado de atenção. Portanto, mais atento do que intenso. No entanto, mais acelerado do que prudente. Meu conteúdo é cada manhã e minha sorte é cada hora. O tempo sempre parece menor para mim. Minha prece é que eu dure um pouco mais. Sentimento estranho esse de querer fazer tudo agora, quando cada encontro tem o seu lugar e a sua razão de existir. Ainda que não aja qualquer razão para admitir, deixo a voz me levar para onde eu tenho que ir.

De repente lembro o que se esqueceu e vicejo o que ainda está por vir. Não é à toa que eu chame aquilo que não convido verbalmente. Mas o universo conspira. A beleza respira. A chuva respinga em mim e em quem se afeta pelo afeto que nutro. Juntamos olhares, mãos, apegos, sonhos, destinos...

De repente são maravilhosas as reticências que se colocam no fim de minhas frases feitas. Propositadamente curtas. Pois devem ser curtas as frases para que sejam frases feitas. O penúltimo copo é sempre melhor do que o último. E é assim com tudo! Com o beijo, o abraço, ao aconchego, o minuto...

De repente me sinto bloqueado. Bloqueio literário. Tantas ideias que não conseguem se traduzir no papel. Aprisiono aquilo que deve ser libertado para o mundo. Um amigo me contradiz e tentando me salvar diz que estou escrevendo menos, porque estou vivendo mais. Concordo me perguntando: escrever não seria viver?

A madeira ganha marcas cujo carpinteiro é a minha percepção do mundo. Do meu mundo particular de chances aproveitadas e perdidas, de pessoas e expectativas, de gente e frustrações, de um apanhado de encontros e uma multidão de desencontros. De maneiras e formas de ler o céu e caminhar o chão.

Perfume amadeirado exala o coração, que antes de carne feito alma é agora árvore de senões. Como o taco que serve aos passos da dançarina ou a tocha que empresta a chama do fogo que queima e ilumina. Como a sustentação do martelo que ajusta ou a haste do arco que flecha e determina.

Coração amadeirado também sangra posto que de vidro ou de ferro, mantém vívida a sua alma que calada ou inquieta permanece lá segura ainda que inseguro esteja o peito que a abriga.

Sem paixões e repleto de encantamentos, como cronista de mim mesmo, quem sabe eu não vire pintor de meus textos? Desenhe as frases que escapolem de meus papéis. Mais atento do que intenso prolongue esses instantes de intimidade, ainda que na minha mais pura e lúcida carência. Coração de madeira também pulsa, ainda que árvore morta.

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Wanderson Nogueira

Wanderson Nogueira

Observatório

Jornalista, cronista, comentarista esportivo, já foi vereador e agora é deputado. Ufa! Com um currículo louvável, o vascaíno Wanderson Nogueira atua com garra no time de A VOZ DA SERRA em Observatório, sua coluna diária.

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