Biscoito amanteigado

sábado, 06 de junho de 2015

Cheiro de biscoito amanteigado lembra a minha infância. Talvez porque tinha uma fábrica de biscoitos, dessas de fundo de quintal, ao lado da casa de minha tia, onde passava as férias de fim de ano.

Cheiro de biscoito amanteigado tem cheiro de infância e dessa ingenuidade que acompanha o menino que sonha em apanhar estrelas. A memória do olfato é mais forte que a da visão e da audição. Não pelo prazer somente, mas pela intensidade.

Recordo do meu vizinho, amigo de infância. Ele tinha esse cheiro de biscoito de manteiga. Rio sozinho por isso, porque é engraçado dar cheiro às pessoas que amamos sem sequer saber o que é amor. E, uma criança não precisa saber para sentir — apenas sente.

A ingenuidade protege as crianças. Garante-lhes a felicidade. Acho que até hoje a ingenuidade me protege. A ingenuidade me protege tanto que não me importo em parecer distraído. O que tem que ser tem força. A palavra das pessoas e o que diz o olhar de cada ser tem que valer alguma coisa. Se acreditar nas pessoas e em certos olhares é ingenuidade, acho que nunca deixei ou deixarei de ser ingênuo.

Posso crescer e não me recuso a ser adulto. Mas nego essa obrigação adulta de batalhar contra a inocência, de ter que se desvencilhar da ingenuidade. A pureza deveria ser o objetivo e não a esperteza fantasiada de sagacidade.

Quando ouço música, eu penso apenas na música e deixo a melodia com sua letra tocar em mim. Eu não quero saber da história da música ou o que há por detrás dela. A canção é para mim como o uivar do vento. Deixo o vento vir e refrescar a minha face. As metáforas estão na minha cara, sem a necessidade de desvendá-las com a perícia de um doutor em enigmas. O mesmo faço com o tempo. Não tenho a ambição de domar as horas. Volta aí o cheiro do biscoito amanteigado. Criança não percebe a fúria dos minutos. Amanhece com o sol e quando vê, já é noite. Não se atreve ao dever de contar o tempo. E isso não é porque não sabe ler a posição dos ponteiros no relógio. Mas porque convive com o tempo como parte dele, sabendo que existe, mas dando pouca ou nenhuma importância para a sua presença. A simplicidade de criança traz a visita da felicidade sem formalidade de convites que geram espera e expectativa. Criança é mais realização do que esperança.

Pequenino tem medo de bicho-papão debaixo da cama e de monstro dentro do armário. Mas pequenino não tem medo do fim do mundo. Esses receios, nós ganhamos quando deixamos a meninice. As neuroses não fazem parte do vocabulário de criança. O fim do mundo será apenas a suposição de um fim tal qual supõe ser o fim. Por que teimamos em adicionar ao nosso dicionário palavras que nos conformam ou nos diminuem? Voar não é só se jogar, mas é acreditar que pode voar. Quando foi que você perdeu o sonho de voar?

Podem me tirar tudo, menos o cheiro do biscoito amanteigado que me traz a infância de volta. É isso que mantém vívida a minha capacidade de sonhar. É isso que fortalece a minha ingenuidade que ainda que inúmeras vezes, transgredida — não sai de mim. Porque essa decisão de ter fé nas pessoas e nos acontecimento é exclusiva a mim e tão somente a mim e a mais ninguém.

Não pensem que me conhecem, tampouco pense que lhe conhecem. Nem eu me conheço. Estou descobrindo. Apresente-se ao mundo! Descubra que cheiro torna a infância próxima de novo.

A chuva, por exemplo. A chuva também me traz boas lembranças. Amo o cheiro da chuva, tanto quanto o cheiro dos biscoitos amanteigados. A chuva delicada que ilumina as flores, que sapeca a grama de diamantes e faz brotar as sementes. Quando criança, claro que nem pensava nessa coisa de fotossíntese. Se pudesse ficar para brincar — dançava com os pingos das nuvens se derretendo no chão. Mesmo quando tinha que me recolher da brincadeira no quintal para assistir desenho dentro de casa, sempre vi a chuva como a possibilidade de diversão. Seja pelo desenho que podia fazer na janela ou pela opção da pipoca, sessão da tarde e minha mãe. Quanta saudade de minha mãe... Do bolinho de chuva com café ou das delícias das tardes sem compromisso. Nunca gostei muito de café. Sempre me pareceu adulto demais. Mas do café de minha mãe gostava, desde que com leite em pó. Disso, eu sinto falta. Não. Claramente, não dá mistura de café com leite em pó. Mas de quem o fazia — minha mãe. Do carinho do colo aconchegante ou da sua voz serenando meu espírito de moleque arteiro e impaciente.

As fotos não captam a saudade que certos tatos e cheiros nos impregnam. Talvez, a saudade fortaleça outros sentidos para além do olfato. Ainda não consegui esquecer a voz de minha mãe.

O cheiro de biscoito amanteigado ensina: perceber é menos importante que permitir. Muitas das vezes a percepção nos faz desistir de permitir. Criança se permite à intromissão no tempo sem saber que está enfrentando o seu próprio vencimento — validade. Ingenuidade permite toda a licença poética para até desbravar palavrões, sem que Monteiro Lobato se lamente no céu das letras. Assim, o que vem do cheiro de biscoito de manteiga é redenção. Entrega à essência fundamental e primária que nos dá o direito de não se importar com o fim do mundo. Não é preciso se salvar do mal, mas é necessário se salvar de si e de nós mesmos. Mas aprende que mesmo que criança sonhe em apanhar estrelas, não é permitido a ninguém aprisioná-las.

O menino quer brincar com você e estará à espera de que sinta de novo o cheiro de biscoito amanteigado ou o tato de mãe. Enquanto isso... Sou criança que adulto de menos sabe que voar é mais importante do que existir.

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Wanderson Nogueira

Wanderson Nogueira

Observatório

Jornalista, cronista, comentarista esportivo, já foi vereador e agora é deputado. Ufa! Com um currículo louvável, o vascaíno Wanderson Nogueira atua com garra no time de A VOZ DA SERRA em Observatório, sua coluna diária.

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