Colunas
Uma relação humanamente imperfeita
O Café Literário, na padaria dos Sans Souci, sábado passado, 24 de fevereiro, acolheu o lançamento do livro de poesias da Isabelle Loivos, Mãeme, em que a relação mãe e filha é tocada sem pudor ao revelar a beleza e a dor deste encontro feminino, humanamente imperfeito.
Quando recebi Mãeme com a meiga dedicatória da Belle, uma vez que o comprei antecipadamente, as poesias entraram em mim como poeiras do mais puro ar. Seus versos me trouxeram lembranças da minha vida como mulher, como mãe, como filha. Como neta. Somente a mulher, o ser que menstrua e, mesmo se contorcendo de dor, levanta-se da cama e vai à luta, sabe que pode ser mãe e experimentar as sensações do amamentar que causam sentimentos e sensações díspares, às vezes indescritíveis, como a de expor corpo em plena rua para alimentar o filho ou da ausência do leite e do empedramento da mama.
Lendo as poesias, fui pinçando palavras e ideias, pescando o inconsciente da Belle e trazendo-o para cá. Os poemas de Mãeme caíram sobre mim. Eu. Minha mãe e minha filha, todas minhas. Dentro dela fiz meus ossos. Dentro de mim, fiz o sangue que corre nas veias dela. Uma vida dentro da outra, fazendo o fio condutor das gerações. Todas imperfeitas. Todas sábias. Todas efêmeras. Mãe e filha fazem uma relação guardada e pensada, arrumada e desarrumada. São como pimentas doces. Aliás, somos. Estamos, enquanto vivas, perenemente experimentando o “vir a ser”. Nunca fomos preparadas para ser mãe. Entretanto, heroicamente somos; muitas vezes silenciosamente, não revelamos a magia ao transformar o que perdemos em pequenas sementes que vamos plantando aqui e acolá, para um dia comermos uma fruta saborosa sobre os galhos de uma árvore. Quicá frondosa.
Afinal, o que é mãe mesmo? Anélia Pietrani, no prefácio, logo joga essa pergunta infame que, até hoje, não sei responder. Quem sabe? Certa vez, vi uma égua dando a luz no meio de uma estrada de chão. O potro caiu esparramado. Ela, sem jeito, cuidou de tocá-lo com o focinho. No dia seguinte, o filhote, com as pernas inseguras a acompanhava. A mãe, altiva, deixou de olhar o mundo. Seus olhos eram ele. Só ele. Estava terna.
É uma relação exclusivamente feminina em que a mulher, o ser que tem seios e útero, é o eixo. Mãe, mulher e filha, poderá ser um produto três em um? Certamente, são duas flores de um buquê em que uma é desabrochada e a outra, botão. Ambas, perfumadas e coloridas, escondem a certeza de que um dia vão murchar e perecer.
Ficar é o verbo que as definem; mãe e filha são o apego do acalento, o desapego em cada dor, em toda ausência. Nem sempre é presença, apesar da sentença de que o ser mãe e o ser filha nunca deixará de existir porque seus olhares não desfaçarão jamais o afeto do ficar com ela e do estar do sem ela.
Neste final de semana, pensando neste produto em sendo três em um, viajei conversando tanto com minha filha que me esqueci dos pardais da estrada. E divinamente almocei com mamãe e minha irmã e dissemo-nos através de múltiplas palavras que somos três em um, um produto sem prazo de validade e que não pode ser liquidado em prateleiras do supermercado.
Tereza Cristina Malcher Campitelli
Momentos Literários
Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário