Tal qual o canto da cotovia

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Depois de participar no sábado, 16 de fevereiro, na Livraria Sabor de Leitura, de
um bate-papo literário, com a escritora Maria Biterello, autora do livro de crônicas
Tempo das Coisas, ed. In Medias Res, senti necessidade de escrever a respeito da
crônica, estilo literário que muito me agrada ler e escrever.

Qualquer um de nós pode ser cronista, basta parar e observar a vida nos mais
íntimos detalhes. O grande trunfo pode estar guardado nos sentidos, que permite a
percepção de um algo a mais. Basta deixar que o olhar, a audição, o tato, o paladar e o
olfato captem o acontecer. De certo, fato algum se repete exatamente da mesma
forma, e, em todos os lugares, como em todos os momentos, há motivos para
reflexões; instante algum é vazio de sentido e de valor. Até uma lata de lixo pode atrair
a atenção de um cronista. E, por que não?


Por princípio, por proposta de vida ou mesmo por prazer, o cronista se habitua a
cuidar das capacidades perceptivas, talvez por sofrer de inquietude crônica. Como
todo escritor, gosta de ir um pouco mais além, talvez por ser movido pela vontade de
compreender a realidade. Sua alma emerge através dos poros, talvez por querer
captar os fatos sem banalidade. Entre o piscar de olhos, apenas a partir de um simples
relance, ele é capaz de desencadear um universo de reflexões.


O pensamento do cronista tem mobilidade estonteante, apesar de correr o risco
de perde-se em devaneios e desviar-se do seu foco de análise. Entretanto, mesmo
percorrendo pensamentos desencontrados e estonteados, ele, ao seu modo, esforça-
se por esclarecer a realidade e tomar de consciência do que é.


Possivelmente o cronista não lá muito goste de trocar seus dotes literários por
outros. No momento em que crônica, ele é um escritor ágil, circunstancial e revelador.
Suas palavras não supõem. Constatam. Registram. Argumentam. Este vivente,
acostumado a transpor para o papel seus pensamentos, gosta de relatar, descrever e
refletir sobre a vida. As circunstâncias simples, inclusive, podem originar belas e
filosóficas crônicas, como amamentar em praça pública.


No processo criativo da crônica, seus sentidos são pontos de partida únicos. Cada
um sente, percebe e faz conjecturas de uma forma, tal qual a unicidade das
impressões digitais. O cronista permite-se, todos os dias, ser livre e destemido para
construir seus textos; ele é um pássaro de asas longas. Voa. Atravessa nuvens.

Certamente, é um perturbador. Um dos piores, provavelmente. Como um
tocador de bumbo, vive a revelar, com humor, com crítica ou com docilidade as
riquezas, as incertezas e as durezas da existência. Seja, pois, qual for a sua forma de
escrever, ele louva a humanidade. Cada crônica que elabora é um hino à vida.
Enquanto puder sentir e respirar, o cronista jamais caminhará como uma
sombra, sua voz é tal qual a da cotovia, cujo canto é ouvido mundo afora.

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Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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