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Somos feitos de palavras
Vivem dizendo por aí que somos feitos de carne e osso. O que é a mais pura verdade. Contudo, se somente desta forma fôssemos feitos seríamos robôs. Um robô faz o que seu dono determina e, se assim não for, vai para a oficina ou para o depósito de máquinas enferrujadas. Aliás, o mundo de hoje é desta forma; o que não serve é descartado. Sumariamente.
Não somos robôs. Não somos máquinas. Temos alma. Temos princípios. Temos ética. Somos gente. Somos ele ou ela. Talvez os dois, quem sabe. Somos belos porque temos inúmeras dimensões. Somos inteiros. Somos feitos de uma porção de palavras. Ah, a porção mágica das bruxas!, poderia ter sido feita de letras que iam se misturando durante o cozimento.
Então, me lembro dos meus longos anos de terapia quando percebi a dificuldade que tinha em pronunciar algumas palavras. Como custei a dizer eu nas frases que pronunciava! Sem dizer esta mínima palavra de uma sílaba e duas letras, era repartida. Custei a dizer eu. Quando disse me senti apenas mais feliz. E, por incrível que pareça, deixei de achar o sapato de salto alto o mais bonito. Passei a andar de sandálias Havaianas com mais frequência. Aí, minha terapia acabou. Eu me tinha.
A psicanálise ganhou um presente de Lacan: tu és. O mundo nos diz quem somos, a comunidade também. Nossos pais nos esculpiram com palavras. Nossos amados nos tocam com palavras. Caso não fosse esta determinação feita de duas palavras, quem seríamos? Estamos, pois, mergulhados em palavras e mesmo os surdos, mudos e cegos captam a vida através do contato com um outro falante. O outro e o grande Outro são feitos de palavras. Por isso, a literatura se utiliza das palavras porque o escritor quer entender, descrever, narrar as palavras. Que ditam tantos comportamentos. Que ocultam tantas verdades.
Por causa do tu és, li a obra de Lacan. Para entendê-lo li Freud. E, para completar a todos, li Sartre. Tudo é literatura.
Somos o que pensamos; o pensamento é estruturado em forma de palavras; as ações sempre se remetem às palavras que nunca permitem que a vida seja uma estrada do esquecimento. Não podemos esquecer do passado, do que nossos antepassados diziam, como nossos ancestrais agiam. Precisamos de referenciais.
Somos fiéis às palavras. Até quem mente é fiel à mentira. A vida é trágica porque as palavras são tristes. O mundo evolui porque as palavras são inteligentes.
Tudo tem começo, meio e fim São etapas feitas de pensamentos, palavras e ações. Se fôssemos infinitos, seríamos nada; não haveria palavras que fossem além dessa tríade. Quer dizer, os recomeços são delineados por novas palavras.
Ivan Lins entendia de recomeços, quando escreveu a tocante letra e compôs bela música “COMEÇAR DE NOVO”.
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Ter me rebelado, ter me rebatido
Ter me machucado, ter sobrevivido
Ter virado a mesa, tem me conhecido
Ter virado o barco, ter me socorrido
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Sem as tuas garras sempre tão seguras
Sem o teu fantasma, sem a tua moldura
Sem tuas escoras, sem o teu domínio
Sem tuas esporas, sem o teu fascínio
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena já ter te esquecido
Começar de novo
Tereza Cristina Malcher Campitelli
Momentos Literários
Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.
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