Colunas
Quinze vezes quatro
Fui na bienal do livro do Rio de Janeiro com uma amiga de tantos anos
com quem tenho especial afinidade literária. Não calçamos o mesmo número
de sapatos, nem usamos o batom da mesma cor. Apesar destas terríveis
diferenças, conversamos o tempo todo. A individualidade nos faz ser
genuinamente nós. Além do que, ela e eu temos algo a mais do que carne e
ossos; gostamos de ler o mundo.
Há outro detalhe bem significante, não somos somente duas; somos
quatro amigas e trocamos literatura como ninguém. Aliás, os livros e as
palavras nos uniram. Há quanto tempo? Nem sei. Possivelmente, já vão quinze
anos. Se quinze vezes quatro é sessenta, temos sessenta canais de troca,
mesmo quando falta uma ou duas. Como foi na Bienal do Rio de Janeiro de
2017.
Então, éramos Lila e eu. Myryam e Sueli não estavam. Bem. Estavam,
sim. Entranhadas em Lila e em mim. E, nós, enfiadas nas alamedas e
estandes, observávamos e comentávamos tudo. Nada deixava de passar pelo
nosso crivo. Severo, muitas vezes. Lila e eu presentes. Myryam e Sueli
intermitentes. A questão é que a gente gosta da boa literatura. Aí é que está!
Nem tudo é maravilhoso, como todo mundo sai dizendo por todos os cantos de
uma bienal. Há livros e livros. Uma capa bonita, um projeto gráfico radiante,
não garante que a literatura que guarda nos permite encontrar a liberdade de
existir. Quem é livre tem a incompletude de um texto inacabado. É livro aberto.
A bienal é a festa da literatura; são dias de encontro entre leitores,
escritores e ideias. São momentos de inspiração. Segundo Proust cada leitor é,
quando lê, leitor de si mesmo. Porém, que texto faz um leitor encontrar o
melhor leitor que possa existir em si?
Autores e leitores fazem, através dos livros, intermináveis canais de troca.
É uma simbiose, esta associação íntima em que o leitor capta o escritor em
cada palavra do texto e o escritor toca o leitor com a percepção que faz sobre
as coisas da vida. Ambos, jamais imóveis, sempre irrequietos e desejantes,
acabam por se encontrar nas páginas do livro. O escritor se modifica; o leitor se
torna uma pessoa diferente.
***
Noutro dia, percebi uma mancha no teto de uma sala. Feia, por sinal. A
mancha me fez notar que aquele lugar tinha uma história, e o borrão
enferrujado dignificava as vidas que passaram por lá, como a minha, que ali
estava a filosofar sobre registros. Também apontava para as dores daquela
casa que pintura alguma poderia retirá-las. A mancha era um lamento. De
saudade? Um choro feito de água de chuva que penetrou no telhado.
Casas também choram...
Tereza Cristina Malcher Campitelli
Momentos Literários
Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.
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