Literatura saborosa

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Estou escrevendo esta coluna ainda envolvida com os saborosos afetos da páscoa e tomando o café da manhã, que, para mm, é a melhor refeição do dia. Mesmo sendo um café com leite, pão e manteiga, sempre me é apetitosa e tem o gosto de começos.

Em 2004, participei da coletânea Lembranças Saborosas, organizada e publicada pela minha professora de oficina literária, a escritora Virgínia Cavalcanti. As memórias envolviam o fazer de um alimento e a respectiva receita. Escrevi uma recordação sobre o preparo de balas de coco, quando eu, aos cinco ou seis anos, ajudei vovó Vera a fazê-las. Além de levar esta cena para um livro e para esta coluna de jornal, vou transpô-la para outras vidas.

A escolha e o preparo de um alimento, o degustá-lo e o compartilhá-lo têm sido presentes na literatura, desde os tempos mais antigos. É um assunto que não tem modernidade e nunca poderá ser considerado ultrapassado. Além de fazer parte da literatura acadêmica de várias áreas do conhecimento, como medicina, nutrição ou antropologia, não possui público específico; hoje as crianças das mais novas idades, inclusive as que começam a ter acesso aos livros, podem ter contato este tema, como as pessoas mais velhas, que possuem interesse cada vez maior sobre a alimentação.

 O alimento é vida, une as pessoas e influencia modos de ser e viver. É essencialmente histórico e cultural, além de ser uma inesgotável fonte de prazer.

A pesquisa realizada pelo autor de Sapiens, uma breve história da humanidade, Yuval Noah Harari, mostra-nos como a alimentação determinou a evolução humana. Inclusive, a era do trigo trouxe mudanças profundas na organização social e na cultura, decorrentes do seu plantio, comercialização e consumo. O trigo modificou a vida no planeta Terra.

O alimento, através dos estilos literários, é retratado de diversas formas. Poesias, romances, contos, crônicas descrevem a cultura alimentar, as emoções, as motivações, através dos quais podemos conhecer a vida cotidiana, abrangendo os hábitos, os modos de pensar, os medos e as aspirações das pessoas de um grupo social, em uma determinada época.

Por outro lado, este tema é valioso na literatura uma vez que enriquece cenas. O escritor, ao escrever sobre cozinhas, mesas e refeições pode aprofundar as emoções, as relações entre as pessoas, a interação com o ambiente.

Além do mais, a produção literária e a leitura de textos que envolvem alimentos desperta o apetite! Então, para deixar todo mundo com vontade de comer balas de coco, deixo aqui esta memória, tão afetivamente saborosa.

Sempre que me lembro da vovó Vera, eu me recordo do coque no alto na sua cabeça preso por dois grampos e dos sapatos anabela que usava. Ainda escuto seus passos, sua voz me contando histórias da fazenda onde nasceu em Conservatória. Ela tinha um livro que me enfeitiçava porque parecia ter saído dos contos de fada ou do mundo do faz-de-conta, onde feiticeiras faziam essências, extratos e substâncias mágicas. Era um velho livro de capa preta, cujas folhas, algumas já soltas, estavam amareladas pelo tempo. Quando era pequena, pensava que ela gostava de fazer feitiçarias na cozinha.

Sentada na mesa da cozinha, fiquei vendo a vovó pegar uma colher de pau, uma panela escura que parecia um pequeno caldeirão e, no fundo de uma gaveta, aquele livro intrigante. Ao meu lado, ela foi folheando página por página, virando-as pelas orelhas até abrir um sorriso que iluminou seu rosto.

- Que tal balas de coco, minha netinha (*)?

 Diante da minha animação, ela colocou o livro sobre a mesa da cozinha e se pôs a consultá-lo. Eu me ajeitei na cadeira, sentindo enorme vontade de participar de tudo, acho que queria ser feiticeira também. Logo fui convocada a quebrar dois cocos numa pedra do jardim, a ralar sua carne e a retirar seu leite, espremendo o coco ralado num pano.

Enquanto conversávamos, vovó misturou o leite de coco com açúcar no caldeirão. Ficou na frente do fogão, por bastante tempo, mexendo a panela com colher de pau. Quando a massa ficou pronta e esfriou um pouco, ela e eu a esticamos diversas vezes; ela puxava de um lado e eu de outro. Por fim, a cortamos com tesoura em pequenos pedaços.

Nós duas fomos, então, até a rede saborear as balas de coco que se derretiam nas nossas bocas. Hum... Foi uma tarde divertida. Inesquecível.

(*) Quando ela escrevia cartas para o vovô, ela me chamava de nossa netinha.

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Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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