Colunas
Ler, refletir e molhar o jardim
A vida que segue. Segue numa sequência de momentos e, nesse continuar, descobri que ler, refletir e molhar meu jardim me oferece oportunidades de guardar sentidos. Enquanto vou regando canteiros, parece que tudo o que li vai fazendo ramificações e raízes dentro de mim. É um modo de estar compartilhando riquezas com uma infinidade de seres, plantas, insetos e minhocas, um universo de vida tão ou mais populoso do que os habitantes da cidade. Ao mesmo tempo em que me abasteço de ideias, dou vigor ao meu jardim, através da água com que rego as plantas. É energia proliferando.
Ah, como precisamos de sentido! Não podemos vagar ao léu, destino afora. É bom saber em quais portas vamos bater e pedir licença para entrar. E como vamos fechá-las.
Ontem, no Clube de Leitura, na Casa Eliza Vidal, aconteceu um desses momentos especiais, quem sabe inesquecíveis, para quem estava ali, mergulhado na leitura de Arroz de Palma, de Francisco Azevedo. O livro foi escrito com tal simplicidade que nos faz penetrar nas questões mais sensíveis da vida, como a finitude, inclusive a nossa própria. Éramos dez pessoas totalmente absorvidas nas questões que a leitura em grupo suscitava. Lemos em voz alta por quase uma hora e, depois, conversamos a respeito. É, conversamos. Não debatemos. Falamos, trocamos experiências, nos olhamos nos olhos e vi que alguns chegaram a ficar marejados. Outros brilhantes. Algumas histórias foram contadas. A minha foi apenas pensada. Todos ali tinham histórias que faziam com que cada um fosse em razão delas. Os capítulos de Arroz de Palma, com generosidade imensa, nos davam toques especiais, como "cuide das suas pessoas". A gente tem que findar com as nossas relações resolvidas para fecharmos a porta social da nossa casa em paz.
Esse livro iluminado tem me mostrado o quanto precisamos cuidar de nós, das pessoas e das heranças que recebemos. Quando Papu morreu, pai da mamãe, dele fiquei com uma gaveta cheia de caixinhas em que guardava botões e miudezas. Eu decidi, aos 11 anos, que aquela gaveta seria minha herança. Guardei-a. Tanto guardei que escrevi Ajelasmicrim, conto infantil premiado. Eu deveria me chamar, quem sabe, Tereza Ajelasmicrim.
Essa lembrança me remete à poesia de Antônio Cícero, Guardar. Que vou deixá-la aqui. Não de presente, mas como a vontade de dar uma riqueza que guardo. Poesias são tesouros.
Guardar
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre se perde a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
Por isso se declara e declama um poema:
Para guarda-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarde um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
P.S: Agora vou molhar meu jardim para guardar o momento atual da minha vida que me é especial. Para guardar as lembranças do Beto, meu amado filho. Para guardar o riso da minha filha. A voz da minha mãe me chamando. O olhar da minha irmã mais nova que tem olhos de mais velha. Meus cachorros. Meus avós. Meus amigos. Este jornal. A Academia Friburguense de Letras. O queijo de minas que está à minha frente. O passarinho que veio bater na minha janela quando comecei a escrever esta coluna.
Tereza Cristina Malcher Campitelli
Momentos Literários
Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.
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