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Esperança, a mais valiosa mercadoria que o trem transportou
A ficção e a realidade estão intimamente entrelaçadas, de tal forma
fundidas na lembrança do escritor que, ao escrever uma memória histórica,
reconstrói os fatos em seu universo imaginário. Toda memória é ficção porque
não é possível retratar fidedignamente a realidade concreta. Então, ele tem,
inclusive, a permissão para criar situações, respeitando os princípios da
verossimilhança. Para realizar essa aventura literária é preciso que um
acontecimento tenha passado por sua vida, deixando-lhe marcas contundentes
e delineadas.
Não tenho dúvidas que recordar é um ato de coragem, uma vez que ao
escrever a respeito de vivências passadas, mesmo que mescladas de
imaginação, tocam a alma do escritor. Trazem à tona momentos vividos que
não voltam e pessoas que não existem mais. É uma viagem que permeia uma
época, até porque as circunstâncias precisam ser contextualizadas para
oferecer maior possibilidade ao leitor de entendimento dos acontecimentos. A
memória literária é, portanto, um registro histórico significativo.
Assim, é a obra “O Apito do Trem” do meu amigo Ordilei Alves da Costa,
também acadêmico e escritor que guarda o trem vivo nas veias, percorrendo
suas células e levando ao imaginário o acontecer da vida num tempo distante.
Aliás, faço questão de ressaltar que o trem em Nova Friburgo caracterizou
gerações ao longo de quase noventa anos, de modo que a vida da cidade foi
não somente influenciada, mas beneficiada pela ferrovia que aqui passava. O
trem, entre 1873 a 1964, à Nova Friburgo trouxe intercâmbio cultural,
desenvolvimento econômico, mobilidade da população, conforto e
oportunidades. Transportou sonhos e transformações. Ofereceu ao povo da
serra a possibilidade de conhecer o mundo novo. O trem ia e voltava carregado
de esperanças, em cada um dos seus vagões. Esta era e ainda é sua principal
mercadoria.
Na segunda leitura que fiz do livro, a mim ficou bem evidenciado que a
preocupação do autor foi costurar a vida da cidade a longo de 10 anos (1950 a
1960) com a Maria Fumaça, que cortava a cidade sem timidez e com altivez.
Fazendo questão de passar devagar, como seus trilhos fossem passarela.
Fazendo moça ficar bonita com vestido engomado e cabelo penteado. Fazendo
moço ficar esbelto com brilhantina no cabelo. A multidão, sem timidez, se
aproximava para vê-la passar bem de perto, querendo conhecer o maquinista,
ser dotado de superpoderes. Ás vezes, ao som das bandas, Campesina e
Euterpe. Mas sempre, à noite, o trem era o aviso às moças para se recolherem
em suas casas. Donzela de respeito não podia ficar na rua depois do “O
Vassourinha” passar.
O texto faz questão de ressaltar que o trem, em sua época, era poderoso.
Primeiro porque cortava a mata da serra da Boa Vista com elegância e
destemor. Era um gigante de aço que subia as escarpas da serra com força
incomum e as descia com delicadeza sem resvalar. Contudo, a serpente negra
enfraqueceu diante dos automóveis e dos ônibus. Foi perecendo. Até
desaparecer de vez.
Entretanto, não posso deixar de chamar a atenção para o fato de que
enquanto existiu, a cidade de Nova Friburgo teve avanço econômico
incomparável aos tempos atuais, alicerçado por uma respeitável estrutura
educacional, enriquecido por uma vida sociocultural intensa. Foi uma época
musicalizada pelo apito. Foi um tempo iluminado.
Parabéns, meu amigo, pelo belo trabalho.
Que este livro não seja apenas um sonho, seja o recomeço de um novo
tempo.
Tereza Cristina Malcher Campitelli
Momentos Literários
Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.
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