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Depois do golpe de inspiração
No final do ano passado, fui a uma exposição de pintura no Parque Lage, onde Margareth de Castro, a Meg, querida amiga, expunha um quadro. Lá conversamos a respeito da arte e dos seus limites, depois dela ter me contado que, numa exposição fora do Brasil, alguém deixara cair os óculos no chão. Os óculos, posicionados no meio da galeria de quadros, foram considerados pelos visitantes uma expressão intencional de um artista e desencadeou reflexões a respeito, além de ficarem intocáveis. Voltei para casa cheia de questões e, então, resolvi escrever a respeito para tentar entender melhor o assunto.
Eu sabia que um dia teria que falar sobre a tênue linha entre o que é literatura e o que não é. A ideia de linha me é bem interessante porque delineia situações díspares. Ser e não ser são antônimos por princípio, como a fantasia e a realidade, e não podem ser equiparadas. Comparadas, talvez. As suas essências são diferentes; não se pode falar de Marx e Walt Disney ao mesmo tempo. Aí, me lembro do ensaio de Virgínia Wolf quando escreveu sobre os músicos de rua que fazem arte sem o aparato dos teatros e muitas dessas apresentações podem ser tão ou mais artísticas. Quer dizer, não podemos pensar nesta diferença sob preconceitos, até porque a arte emerge na cultura. Ah, a cultura é acolhedora e apaziguadora. Tem voz. É o espaço em que o artista encontra meios para mostrar fatos e afetos, fantasmas e anjos que nos rondam. A Literatura é a arte da palavra que nasce e renasce continuamente dos sentimentos e das percepções do artista, é a metáfora de um diálogo entre seus olhos com seu tempo. Pois sim, é uma linguagem que relê as imagens do mundo.
Mas para falar de literatura é preciso entender a arte. Acredito que o conceito de arte seja um dos mais debatidos nos quatro cantos do mundo. Além do mais, pode ser definido em cada esquina e, mesmo nos centros de estudos avançados, não há uma única definição para a arte, nem dos seus limites. Está no sentido da obra? Nas repercussões que causam nas pessoas? Ou na definição dos artistas?
Apenas há a certeza de que a arte sobrevive ao tempo, não é efêmera como a moda; permanece viva, como a Estátua de Davi, o Sitio do Pica-Pau Amarelo e o Os Miseráveis. É uma expressão que contrapõe à linguagem comercial e consumista; não é um produto feito em série.
Além do mais, a arte tem a função de causar admiração e de tocar o outro. Impactar. De desestabilizar, ao oferecer ao observador a liberdade para pensar ante a dúvida e o espanto. Assim, a arte transforma a percepção homem-mundo e inova os modos de fazer, ao ser construída a partir de processos inéditos, tal qual a obra do pintor francês Claude Monet que, através das cores e do movimento dos pincéis, tentou se aproximar das formas naturais, criando o impressionismo.
Depois do golpe da inspiração, mesmo sob o acaso, a arte é preparada laboriosamente pela alma do artista. Ah, não é produzida a partir de receitas e regras pré-estabelecidas. A arte tem a força da expressão humana.
O que não é arte não recebe o olhar cuidadoso do artista. É uma expressão simplificada, cujo autor não tem a intenção de expressar sentidos.
E a literatura? Ora pois, é a expressão escrita que vai além do aparente e do simplificado. É arte da palavra quando podemos usar a mesma palavra numa poesia, num conto, numa notícia, num diário ou num bilhete. A poesia de Clarisse Linspector, Poema de trás para frente e vice versa..., mostra as possibilidades das palavras. Se lido de cima para baixo há um sentido, se lido de baixo para cima, há outro.
Não te amo mais.
Estarei mentindo dizendo que
Ainda te quero como sempre quis
Tenho certeza que
Nada foi em vão.
Sinto dentro de mim que
Você não significa nada.
Não poderia dizer jamais que
Alimento um grande amor.
Sinto cada vez mais que
Já te esqueci!
E jamais usarei a frase
Eu te amo!
Sinto, mas tenho que dizer a verdade
É tarde demais...
Enfim, as palavras não foram jogadas no papel. Foram, sem dúvida, trabalhadas. Cuidadas. No sentido e na sonoridade. Isto é literatura!
Tereza Cristina Malcher Campitelli
Momentos Literários
Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.
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