A cor do escritor

quinta-feira, 11 de agosto de 2016
Foto de capa

Moro num lugar de natureza. Costumo caminhar quase todos os dias, quando escuto o ruído das folhas secas sob meu pisar, observo a perfeição da natureza e penso na vida. Ah, o pensamento vaga, vai longe com inteirezas e repartições, quando tudo se mistura como ingredientes de uma receita de bolo de amêndoas. E, assim, mesclando ideias, vou adentrando trilhas, sem me preocupar em organizá-las. Sou desarrumada. Talvez por isso precise escrever; as palavras me organizam e reorganizam, dão-me o tom furta cor, a tonalidade dos escritores.

Neste tom multicor, penso como estou me fazendo escritora; um fazer diário, sofrido e cansativo. E, agora mesmo, escrevendo esta crônica, olho pelo vidro da janela e vejo meu jardim com plantas perfeitas; únicas, simétricas e belas. Fernando Pessoa revelou isso na fábula Rosa de Seda, uma relíquia da literatura.

Não se torna escritor. Faz-se. Tornar-se é mágico. Fazer-se tem lida; a busca da perfeição é a base dos textos, mesmo nos de exercícios ou rascunhos. Até nos momentos em que ao conversar ao telefone, fazemos um desenho aqui, escrevemos uma palavra ali, uma frase acima, outra abaixo.   

É uma longa busca que começa por uma inspiração, uma significação ou um espanto, com disse Ferreira Gullar. A seguir, buscamos as palavras exatas para expressar as ideias iniciais. De palavra em palavra, de frase em frase, quase num engatinhar, o texto vai sendo construído, modificado, encorpado. E o mesmo acontece com o escritor, cuja lógica, inicialmente desorbitada, vai nesta lida, encontrado sua essência. A própria voz.

A nossa voz, sentimos. Não a escutamos. Se bastasse uma escuta na frente de espelhos, seríamos revelados a céu aberto. Mas nós nos revelamos nas entrelinhas e inevitavelmente nos surpreendemos. Temos prismas desconhecidos que nos regem, o inconsciente individual e coletivo. Freud, em 1895, descreveu o inconsciente em “Projeto para uma Psicologia Científica” e criou a psicanálise.

Através do escrever, o inconsciente escapa através das palavras, pequenas brechas nas paredes desta caixa de guardados. Quem quer se conhecer um pouco melhor pode escrever, não necessariamente sobre si. Seria suficiente, talvez, construir minicontos, em versões diversas sobre uma refeição. Provavelmente, a primeira seria a respeito de cardápios saudáveis, pratos coloridos, ambientes aconchegantes em torno de uma mesa, regado a vinho tinto ou verde. O segundo, de humor, quem sabe. Mas no vigésimo, meu amigo, há quem queira comer com as mãos, estar só na mesa ou devorar carnes. Carne tem significado forte; é constituição, é proteção, é sensualidade. Mas também revela nosso instinto animal e predador — o homem é o último animal da cadeia alimentar. James Joyce mostrou isto em Ulisses, no terceiro capítulo, se não me engano.

O escritor quer saber de si, busca sua animalidade e humanidade, suas inconsistências e medos, esperanças e desejos. Seus abismos. É um ser tão repartido e discrepante que precisa buscar o seu eu mais profundo, pois sabe que somente assim vai encontrar sua voz. Autêntica. Única. E, certamente, vai existir pelo menos um leitor que se alimente com suas histórias, crônicas, poesias ou outras formas de criação literária.

E, não por acaso hoje, na minha caminhada, pensei que preciso também ler e reler. Estudar a produção literária dos grandes mestres, que muito têm para nos ensinar, é um modo de aperfeiçoamento. Estou com Mia Couto em meu computador e descortinando, a cada leitura, esse contador de histórias africano. Magnífico. Somos humildes aprendizes e neles bebemos do melhor.  

As fontes de águas límpidas também nos oferecem oportunidades para conhecermos nossos prismas e compreendê-los.

“O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora”
Mia Couto

P.S. Através das gotas de água transparente vislumbramos a repartição da luz, quando o tom furta cor é desnudado.

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Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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