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Coisas de família
“Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho.”
Clarice Lispector
Coisas de família. Minha casa é meu castelo; o melhor lugar do mundo para estar. Uma casa tem suas belezas e simplicidades, além de tudo tem histórias. A minha, por qualquer canto que se olhe, tem algo a dizer; um abajur que foi do meu filho e outro que comprei num passeio que fiz em São Pedro da Serra, num dia de céu azul quando conversei com a dona da loja por longo tempo e ela... E assim vai longe o que cada objeto tem para transmitir ou representar. Não habitamos de graça, tudo tem seus valores e, quanto mais valor um objeto possui, mais simplicidade tem. Valorizamos, na verdade, o que é de mais simples, como a água saborosa que bebemos do filtro de barro ou uma velha camiseta de malha branca pode ser aquela roupa que vestimos quando queremos ficar à vontade, sentindo a nossa privacidade.
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Noutro dia, naquele estado de vigília que ocorre quando estamos com os olhos semicerrados, enroscados na cama e recostados no travesseiro, vagando entre o sono e a realidade, mais uma vez, uma banal pergunta veio a mim: onde o escritor deve habitar?
Ora, se todos nós moramos numa casa; que seja numa cabana no campo ou num prédio de rua movimentada. Se o escritor não é uma pessoa especial, pelo contrário, é o mais comum dos viventes, merece, pelo menos, habitar num lugar que tenha banheiro, fogão e uma caixa de guardar sabonetes. Ele precisa de simplicidades.
Ah, mas o escritor, esse ser tão universal, não pode viver entre paredes de cimento. Precisa morar nas ruas e áreas descampadas para captar a vida e pouco se incomodar com as consequências que suas palavras trazem para os leitores e suas moradas. Ele cuida das suas palavras que transportam ideias e perambulam pelas praças e esquinas, fazendo-se presente na realidade toda, a cada tempo. Não é necessário que seja um cosmopolita, mas sua casa não pode ter cadeados em suas portas e janelas. E, se os tiverem, é preferível que habite na soleira da porta dos fundos.
O lugar onde habita precisa ter alimento substancial que não necessariamente traga proteínas para sua carne, mas sais minerais que façam sua alma ter a dignidade do amante de palavras. Monteiro Lobato se nutria bem. O poeta reside nos versos de poemas de outros poetas, por exemplo. Já Rubem Braga morava numa cobertura em Ipanema de onde podia ver nuvens. Hoje, não por acaso, visto a velha camiseta de malha branca para ler os ensaios de Virgínia Woolf.
O escritor ama seu trabalho. E que árduo trabalhador ele é!, chegando a riscar a ponta da caneta no papel de sol a sol; seu lar tem que ser arejado. Não importa se suas roupas estejam em frangalhos, mas suas palavras... ah, elas devem dar volume ao pensamento de tantos que arrumam suas casas com objetos simples. O escritor é como aquele atleta que passa o bastão, precisa de uma casa que lhe dê espaço para treinar.
Mas por que tanto me preocupo com os lugares onde os escritores podem viver? Será porque preciso de uma varanda para pensar? Lendo o ensaio de Virgínia Woolf “Músicos de Rua”, tive a impressão que não somente ela se sentou na frente de deles para observá-los, como leu a respeito, provavelmente aconchegada em alguma poltrona de sua casa. Nesse ensaio, com simplicidade, falou desses desconhecidos, que, muitas vezes, nos encantam. Há poucos dias, parei para escutar um concerto de Jazz, ao som de um saxofone, na esquina da rua Visconde de Pirajá com Vinícius de Moraes.
Escrever um belo texto, seja crônica, conto ou ensaio não é tarefa fácil. É trabalho bordado com fios de cetim. Tive avós bordadeiras.
Enfim, nós, os escritores, precisamos nos sentir aconchegados em nossas habitações. Simbólicas, sem dúvida.
Tereza Cristina Malcher Campitelli
Momentos Literários
Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.
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