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Apprivoiser: um desafio ao tradutor
Ainda estou envolvida com a palestra do O Pequeno Príncipe, que acontecerá no dia 29 de junho de 2019, às 15 horas, na Academia Friburguense de Letras, durante a Feira de Livros do Anexo Jovem. Não me parece estranho um autor e uma obra tomarem conta de um pensamento por tanto tempo, através de pesquisas, leituras, reflexões e anotações. A pesquisa faz o passado vivo e permite-nos um olhar distanciado, possibilitando-nos deslizar em dimensões temporais e geográficas distintas, em avaliar pontos de vista diversos. Esta obra contém sensível humanidade, cada frase nos faz refletir sobre relevantes significados existenciais. A cada época da vida em que a tomamos sob os olhos, chegamos a conclusões diferentes, além do que o texto contém mensagens presentes em livros de referência como a Bíblia, o Sutra de Lotus e o Alcorão.
De certo, não se pode observar uma obra do passado com os olhos da atualidade; é tão empobrecedor que os textos se apequenam. Por assim o ser tomado, O Pequeno Príncipe tem sido considerado clichê ou ultrapassado. Porém é um livro de qualidade literária com mais de setenta e cinco anos de publicação, traduzido para mais de 220 idiomas e dialetos, tendo sido vendido 150 milhões de exemplares no mundo aproximadamente e, ainda hoje, se encontra no ranking de vendas.
O Pequeno Príncipe passou pelas mãos de tradutores, e o verbo “apprivoiser” contém um grande desafio a quem o traduz. Ao se traduzir Apprivoiser para o português encontramos os significados de domar, domesticar, amansar, tornar mais sociável. O monge beneditino dom Marcos Barbosa e o poeta Ferreira Gullart a traduziram como cativar que significa, além dos anteriores, conquistar e fascinar, palavras que abrangem sentidos afetivos. Já Denise Bottmann a traduziu como domesticar.
Ao conversar com amigas que fazem traduções, uma delas a Sally, de nacionalidade americana, que versa do português ao inglês e vice-versa, disse-me que o tradutor precisa ter sensibilidade com os sentidos do texto porque a tradução exata pode prejudicar o caráter literário e a mensagem da obra, uma vez que seu autor transcreve para o papel suas percepções, sentimentos e ideias genuínas em sua língua materna, sem se preocupar como sua produção será utilizada em outras línguas e contextos culturais.
Realmente ao ler as três versões, eu reagi a de Denise Bottmann. Estranhei. Os sentimentos descritos por Saint-Exupéry entre o Pequeno Príncipe e a raposa são de nobre afetividade, descrita com singeleza e espontaneidade.
Assim, podemos ver na tradução de Ferreira Gullart:
- Quem é você? – perguntou o pequeno príncipe. – É muito bonita.
- Sou uma raposa – disse a raposa.
- Vem brincar comigo – disse o príncipe – Estou muito triste.
- Não posso brincar com você – respondeu a raposa. – Ninguém me cativou ainda.
Na versão de Denise Bottmann
- Quem é você? – perguntou o pequeno príncipe. – É muito bonita.
- Sou uma raposa – disse a raposa.
- Vem brincar comigo – disse o príncipe – Estou muito triste.
- Não posso brincar com você – respondeu a raposa. – Não sou domesticada.
Aí, nos deparamos com outra questão, os níveis de envolvimento afetivo entre pessoas. E, aí, mergulhamos em mais um outro nível de reflexão. Essa é mais uma forma de Saint-Exupéry me envolver. Ah, como ele me domestica!
Tereza Cristina Malcher Campitelli
Momentos Literários
Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.
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