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Somos todos peixes
quinta-feira, 22 de maio de 2014
Outro dia vi uma criança de poucos, muito poucos anos tentando virar uma página de um livro com movimentos mágicos. Na verdade, ela oscilava a mão de um lado para o outro tentando em vão provocar a mudança da página do livro, pois tais passes de mágica são específicos de um tablet ou smartphone.
Enquanto todas as demais gerações tiveram que aprender a manipular um tablet, aquela criança precisava aprender a manipular um livro. Esse sutil comportamento muda todo o mercado, pelo simples fato de que o consumidor mudou.
O alfabeto precisará inventar novas letras, pois as gerações X, Y e Z já não explicam mais o que está acontecendo e o resultado no ponto de venda também terá novas explicações e resultados.
Pensar negócios mais simples, mais cômodos e antenados é parte fundamental de uma nova realidade, movida e orientada pela rede. Consumidores mais conectados exigem processos mais adaptados à internet, com interfaces que permitam alguma interação, acessibilidade e resolutividade à distância.
Precisamos libertar nosso cliente de rotinas cômodas para o ponto de venda — e trágicas para eles. Lojas baseadas na estratégia do crediário, aquela que leva o cliente mensalmente à loja para realização do pagamento do carnê e abre a oportunidade para nova venda, estão com seus dias contados. O cliente quer conforto, quer conectividade, quer distância.
Na verdade o cliente novo quer cada vez mais certa desconexão do mundo real e pretende mergulhar cada vez mais no processo virtual. Quanto mais mergulha, mais se prende na rede. À medida em que se aproxima do virtual, ele se distancia do real, se conecta à rede e se desconecta das pessoas. Mãos ocupadas em telas e teclados são mãos distantes de corações e próximas de cartões de crédito. A compra cada vez mais tenderá a assumir o vazio da impessoalidade e da distância pessoal.
Não é raro assistir adolescentes conversando com seu amigo ao lado via chat. A palavra dita está sendo substituída pela palavra escrita, aliás, por uma escrita que não contém palavras, mas restos do que já foram palavras. Siglas, abreviaturas, grafia de grunhidos e muitos parênteses e alguns dois pontos definem hoje um típico diálogo e culminam com o distanciamento do mundo de amigos reais para o mundo de amigos virtuais.
Encontros, passeios, intrigas, brigas, namoro, sexo, tudo acontece virtualmente e, é claro, as compras estão cada vez mais sujeitas a isso. Jovens, adolescentes e crianças cada vez mais se acostumam com uma realidade que não existe e desvirtuam o que existe. Ter um braço na rede é cada vez mais determinante, não somente para fazer negócio, mas para sinalizar que o negócio está atualizado ao tempo de seus consumidores.
A paquera que acontecia num rabo de olho agora é construída com um perfil bem elaborado. O grupo que se encontrava na rua depois do dever de casa, agora está no Whatsapp. Pessoas que são "off” na vida real conseguem ser "on” no mundo virtual. Negócios que sequer existem no mundo real são bons no mundo virtual. São tantos olhares em telas de todos os tipos que muitas oportunidades reais são desperdiçadas, quer seja no amor, quer seja nas compras.
O fato é que a internet e toda a gama de devices conectados estão mudando nossa forma de agir, pensar, decidir. Na grande rede de computadores, somos cada vez mais apenas um peixinho preso à rede e sendo carregado de um lado para o outro. As novas gerações têm um grande desafio que transborda o consumo e atinge a essência: aprender a virar uma página de livro feito de papel, olhar nos olhos de uma pessoa sem ser através de uma câmera, usar a palavra rede sem se referir à internet, ter um cartão de crédito e não fazer dele seu melhor amigo. Afinal, nós sabemos o valor de deitar em uma rede, com um bom livro e uma ótima companhia, bem longe do cartão de crédito.
Roberto Mendes é publicitário, especialista em marketing pelo Instituto de
Administração e Gerência da PUC-Rio, pós-graduado em Engenharia Ambiental,
professor titular da Universidade Candido Mendes e sócio da Target Comunicação
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