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Os pecados do consumo
quinta-feira, 24 de outubro de 2013
A igreja construiu uma ordem social que durante séculos definiu valores, comportamentos, permissões e, é claro, rotulou tudo que não era adequado como sendo pecados. A cultura religiosa se misturou ao social e tais aspectos interessam e muito ao marketing. O fato é que o capitalismo vem subvertendo um a um, e criando novas ordens quase religiosas que estão se confundindo com nosso estilo de ser, ter, vestir, comer e tantos outros verbos que impactam no nosso estilo de viver e de vida.
Provavelmente tudo começou com Eva, preocupada em estar magra e bonita, e a cobra sabendo desta característica exacerbada de nossa espécie, disse: come, Eva, emagrece! Bastou. De lá pra cá muita coisa piorou, o que era pecado virou consumo e os sete pecados capitais viraram as sete maravilhas do consumo.
A luxúria, por exemplo, virou estratégia para aquecer o relacionamento. Sexy shop, que era coisa do demônio, agora está na moda e a indústria do sexo fatura bilhões licitamente em todo o mundo.
A preguiça que era feia ficou na moda. Desestressar, relaxar, não fazer nada é tudo de bom. O negócio que era a definição da negação do ócio, agora é um meganegócio a favor do ócio — resorts, SPAs e tudo que descansa virou o sonho de compra e de venda pra muita gente, e junto muito dinheiro circulando.
A avareza, outro pecado tão castigado no passado, é sinal de virtude no mundo moderno, ajuda a financiar o crédito tão escasso para os que precisam mais urgentemente consumir e é sinal de que a pessoa é responsável, afinal, tem planejamento financeiro. Poupança em excesso faz o dinheiro valer pouco, mas quando muitos querem e só alguns guardam o sistema funciona bem, muito bem.
O que dizer da ira? Tão reprimida por séculos agora é incitada em terapias pessoais e empresariais, e a regra do "põe pra fora”, do "não guarda que faz mal”, tudo conspira para algo mais primitivo que o gutural berro, algo anterior, atende à necessidade que, quando não atendida, gera o berro; o tal do conforto... assim, "compra que melhora”.
A gula vive em regime quase nazista, o estereótipo do anorexo que ninguém gosta, mas todos invejam, encarna a sobreposição da opinião pública sobre a opinião individual e emagrece o estado de espírito e gera muita frustração em não poder comer tantos paladares e prazeres que nos cercam. Quem não resiste come mais e compra mais para equilibrar a frustração e quem não come, compra para compensar a negação, no fundo é tudo "compra que melhora”.
A vaidade vai de mãozinha dada com nosso estilo do eu mereço. O que matou Narciso agora o transforma em Deus. O reflexo de nossa sociedade é uma sociedade que não vê o outro por que estamos ocupados demais com nossos olhares focados em nós mesmos. Espelhos, vitrines, câmeras de celulares e retrovisores são capelas, e provadores, templos. Clínicas de estética são oráculos e os cirurgiões plásticos controlam os portões do paraíso.
Vovós disputam com garotas a roupa da moda e de geração em geração parece que pouco se aprende da vida. O consumo só modifica a imagem externa que temos de nós, e o espelho mostra o temos de melhor, nossa superficialidade.
A inveja, tão negativamente propagada nos vidros traseiros de Chevettes multicoloridos, virou meta. Sinal de planejamento. Querer o que o outro quer é pura virtude, consumir o que o outro consome é algo valorizado, estimulado e festejado. Celebridades emprestam seu glamour em comerciais, revistas de estilo de vida de famosos e cópias descaradas de marcas valorizadas são o símbolo do invejar. Nosso estilo pertence a quem invejamos. Crianças e adolescentes, mais que os adultos, se tornaram tatuagens de chicletes sendo coladas, cópia de seus "ídolos” de consumo, massacradas nas TVs por assinaturas, video games e brinquedos de marca.
De fato o diabo vive o pior momento de toda sua biografia. Nunca foi tão zombado, tão ignorado.
É curioso o paradoxo que vivemos onde as culpas recaem sobre nós, não mais como pecadores, mas como vítimas do pecado, e, em vez de seremos os responsáveis que têm o poder de mudar a situação, nos acomodamos ao pior papel, somos todos meras vítimas, que precisamos compensar os pecados que nos cercam, consumindo, comprando, possuindo.
Entre cremes para beleza, brigadeiros dietéticos, planos de previdência, gritos, metas, ócios e reflexos brilhantes seguimos comprando cada vez mais, flertando com o pecado de deixar a vida nos levar, crentes que ao final de tudo seremos felizes e esquecendo que a felicidade é caminho em si, como dizia Gandhi.
Roberto Mendes é publicitário, especialista em marketing pelo Instituto de
Administração e Gerência da PUC-Rio, pós-graduado em Engenharia Ambiental,
professor titular da Universidade Candido Mendes e sócio da Target Comunicação
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