Somos teares

sábado, 19 de setembro de 2015
Foto de capa

Fui à Bienal do Livro, no Riocentro, que neste ano teve a Argentina como país homenageado. Os salões estavam lotados de visitantes, a maior parte de jovens, estudantes de escolas. Nas avenidas, entre os estandes das editoras, grupos de alunos conversavam; alguns com seus professores que, certamente davam orientações a respeito de autores e suas obras. Nas prateleiras, os leitores pegavam livros, folheavam páginas e conversavam entre si. Cenas bonitas de se ver.

E, aí, no meio da multidão, comecei a refletir sobre a importância da literatura e dos agentes de leitura na vida. Não poderia deixar de trazer aqui algumas ideias. Estamos mergulhados em histórias! Sejam reais ou ficcionais. Delas, somos consequência.

Assim, rodeados pelas histórias familiares, do lugar, das demais pessoas que nos cercam e pela literatura, através dos livros, a começar pela infantil, vamos, continuamente, construindo as nossas próprias. A cada dia, todas se misturam como os ingredientes de um bolo e resultam num gosto. Nós! 

As histórias são decisivas na vida, uma vez que penetram na pessoa como fios coloridos, do branco mais brilhante ao cinza mais escuro, e navegam pelo sangue. Seguem, enquanto a vida pulsar, velejando como barcos à vela, entrelaçando sentimentos e ideias. Vontades e realização de projetos de vida com energia.

As pessoas que contam ou oferecem histórias à criança e ao jovem são os agentes de leitura. E, certamente, são bem intencionadas. Que se queira provocar reflexões sobre valores, tocar com nobreza de sentimentos ou atiçar atenção à vida e sua preservação. Mesmo que seja apenas entreter.

Todos esses gestos são imbuídos de bem-querer. E a criança capta esta benquerença numa fração de segundos. Uma troca de olhar é suficiente para deixar registros significativos na estrutura pessoal.

Os pais, avós e professores são os agentes que mais influenciam. E os adultos costumam se lembrar dos livros que ganharam quando crianças e falam com afeto de quem os deu. O mesmo acontece com as histórias contadas e seus contadores. Ah, imediatamente, me lembro das minhas avós! Que lindos rostos elas tinham!

E, assim, pensando nesta relação, fui passeando pelo salão azul e... então... de repente... escutei o tango. O tango! Música argentina, intensa e forte, que a bienal não poderia deixar de reverenciar.

Logo, a lembrança de Astor Piazzola veio ao encontro deste belo momento que experimentava; sua história exemplifica a presença dos pais na vida dos filhos. 

Astor Piazzolla foi bandoneonista (tocador de bandoneon, o principal instrumento da orquestra do tango) e, na minha opinião, um dos maiores compositores latinos do século passado. Como um gênio, imaginei que seus acordes foram feitos por fios prateados tecidos pela musicalidade intrínseca a ele, pela relação com o pai e pelos esforços que realizou para desenvolver suas capacidades musicais.

Aos nove anos, aproximadamente, ganhou do seu pai, Vicente Piazzolla, um bandoneon. Este pai não deu ao filho um livro, mas um instrumento musical. Deu arte. Se pensarmos bem, os acordes são feitos de notas musicais, como frases de palavras. A música expressa a alma do autor, seu sentimento e ideias. Tal qual a literatura. E, nós, ouvintes ou leitores, captamos o sentido da obra.

Enfim, este pai Vicente, soube conhecer o filho que tinha, perceber os lampejos da alma infantil que trazia a tendência musical. Este pai, sem grandes recursos econômicos, soube presentear. Deu um bandoneon. Este pai tanto amou o filho que lhe deu um presente que nada tinha de vulgar e dele fez um gênio da música. 

Com o instrumento, Astor Piazzolla abraçou a música. Estudou nos Estados Unidos, Argentina e Europa. Dedicou-se por inteiro. Tocou o tango e transformou-o, sem medo das críticas severas e reações restritivas. Superou e brilhou.

Depois que seu pai faleceu, compôs uma das mais belas músicas do século passado que vai atravessar os tempos: Adiós Nonino. Tal qual seu filho chamava o avô. Nonino. Seu pai. Vicente Piazzolla.

Quando escutamos Adiós Nonino o corpo arrepia, a alma enleva, a mente se encanta com os acordes. É a mais pura arte, construída com o mais profundo amor de um filho por um pai. Um agradecimento. É a expressão intensa da natureza humana que se debruça sobre si mesmo. A música é como um personagem que nos acompanha vivo, presente, na mais plena forma de ser. A música, como a literatura não nos deixa sentir a solidão, nem a indiferença do pôr do sol que anuncia o findar do dia.

O que eu quero dizer é que nós, adultos, se pais, avós, amigos, tios, professores, vizinhos de uma criança ou jovem temos a imensa responsabilidade de mostrar a beleza e as possibilidades da vida. Nunca devemos direcionar caminhos. Apenas sugerir que eles existem. Não somos mais do que teares!

PS: Não há civilização sem tecidos.

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