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À parte disso
Uma viagem é sempre inspiradora, principalmente a um lugar que valoriza seus heróis, artistas e escritores; que reverencia os talentos que gestou. Não basta uma terra gerar pessoas; é preciso fazer algo a mais acontecer. Que seja apenas fazer penetrar nos pulmões de sua gente ares imaginativos, olhares que percebam detalhes e pensamentos altruístas. É preciso ter pessoas que cuidem de outros com sensível acolhimento. E se do solo emana tal estado de espírito, é porque ali há um passado fascinante. Há histórias a serem contadas com orgulho.
Estava na terra de Camões. De Saramago. De Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Ricardo Reis... Meus passos sobre as calçadas de pedras portuguesas desenhadas me causavam gostosa impressão. Admiração para ser exata. Tudo lá tem registros; nas praças, nos restaurantes e nas ruas o passado é reverenciado.
Almoçando num lugar muito simples por sinal, localizado na extremidade sul do continente, no Algarve, me deparei com uma parede branca imensa que trazia versos de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa), transcritos em três idiomas: português, inglês e francês.
Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo
Almocei relendo a frase e revendo ideias. Pensando naqueles versos enquanto alicerce da vida. Foram da minha. Que bom! Não me tornei um soldadinho de chumbo. Entrei na juventude com eles nos bolsos da calça jeans desbotada. A preferida. Pessoa entremeou todos meus dias, com versos instigantes e dançantes que deslizavam sobre o cimento cor de neve.
O nada é ausência de narrativa; é silêncio, é parede vazia. Não é gente. Gente é criança que nasce de outros, que chega num mundo misterioso; indecifrável aos primeiros olhares. Engatinha e chora. Descobre a palavra, um achado interessante. Divertido e integrador. Balbucia. Narra o mundo e a si mesmo. Vai sendo mais. Vai se tornando tudo. Sai do casulo, entendendo que ela é eu. “Sou eu.” É geração seguinte; gente nova, diferente. Por não ser nada, entra no mundo com sonhos distintos. Faz-se pessoa. E Pessoa sabe disso melhor do que ninguém.
Salve os poetas que nos fazem ser pessoas melhores.
Autopsicografia
Fernando Pessoa
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira, a entender a razão,
Esse comboio de corda,
Que se chama coração
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