Palavras untadas com óleo de algodão e gosto de pistache

sábado, 22 de agosto de 2015

Noutro dia estava assistindo a um programa culinário da Bela Gil e tive uma agradável surpresa com a participação do Lenine, como convidado especial, um cantor e compositor do qual gosto muito, não somente pelas suas músicas, mas pela pessoa que é. O tema do programa era o reaproveitamento das sobras do alimento.

Enquanto a comida era feita, a Bela disse:

- Agora, vou untar a forma – avisou, com aquele riso gostoso.

- Untar! Gosto dessa palavra – ressaltou ele, com alegria contagiante e fez um relato sobre como as palavras lhes são inspiradoras - Estou sempre atento a elas.

E eu, uma telespectadora acostumada em reescrever palavras, tal como estava ensinando a Bela, ganhei o dia! A palavra como o alimento não deve ser repetida de qualquer forma. São dengosas; gostam de cuidados. Às vezes de alguns adereços.

Lenine falou sobre um gosto que tenho. As palavras. Sinto prazer em pesquisá-las, descobrir seus múltiplos sentidos. E as metáforas? Vivem explodindo dentro de mim. Fico atenta para pinçá-las. Perco tempo relendo meus arquivos de frases especiais.

Ah, não me canso em pensar palavras. Durmo e acordo com elas.

As palavras são a essência de todos nós. De tudo o que fazemos, aprendemos; do modo como interagimos com o outro e com o ambiente; das civilizações. Inclusive, o inconsciente individual e coletivo é estruturado como linguagem. A palavra, dentre as demais expressões culturais, é contundente.

Nascemos e morremos cercado por palavras.

E aí está um dos grandes valores da literatura: fazer-se presente na vida da pessoa para aproximá-la da língua, principalmente a materna. Mostrar as imensas possibilidades das palavras. Exibir sua beleza. Palavras generosas são as que nos fazem sentir perfume e sabor. 

Além do mais, a literatura é um excelente acesso ao conhecimento. Conhecimento de si, do outro, do ambiente, do mundo. De tudo o que está presente em nosso quotidiano. Afinal de contas, as histórias e os poemas emergem da realidade concreta, na qual estamos mergulhados, como as biografias.

Precisamos das palavras! Como do ar que respiramos.

As palavras possuem vários significados. Como untar, por exemplo. Untam-se as formas de bolo com manteiga, mas os olhos ficam untados de tristezas, como nosso coração pode ser untado de amor. E quando untamos o corpo com óleo de algodão? Faz a pele macia. Ou até as palavras são ditas untadas de preocupação. De alegria. De medo.

Mas há situações em que elas não conseguem revelar o que se quer dizer.  Não é para menos que Guimarães Rosa criou tantas. E para fazê-lo estudou com profundidade a língua portuguesa. E vários outros idiomas. Isso nos mostra que ao mesmo tempo em que as palavras possuem uma simplicidade extraordinária, precisam ser refletidas.

Palavra tem que ser encarada com seriedade e ser empregada com dignidade. Ser a nossa expressão mais verdadeira. E a verdade é simples e objetiva. Não tem subterfúgios.    

São divinas! Os poetas conseguem entrar no lugar mais profundo dos nossos sentimentos, tocar no que mais nos sensibiliza.  Mas nem todos as alcançam. Suscitam sensibilidade e reflexão para entrarem em nós, sem perder a plenitude de sentido. Nossas portas devem estar abertas para que não as percamos.  Palavras incompreendidas são vazias. E assim ficam até que num dia, se houver oportunidade, elas renascem em nossas lembranças. Realçadas. Resgatadas.

É preciso que nos acostumemos com elas. As palavras. São libertadoras. Corajosas. Reveladoras, independentemente da forma como são expressas. Manifestam pensamentos que são estruturados através de palavras. Soltas. Discrepantes. Precisamos organizá-las para expressarmos ideias, opiniões, decisões, sentimentos. Preferências e assim por diante.

É bom entrarmos em contato com a literatura na mais tenra idade quando alguém nos conta ou lê uma história. Depois através de filmes, livros, em prosa ou poesia, peças de teatro, histórias em quadrinhos e outras formas de apresentação literária, como as letras de música quando possuem expressão poética, como as de Vinicius de Moraes. 

A literatura nos permite uma boa degustação de palavras.  Por falar nisso, adoro ler romances com gosto de sorvete de pistache!

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