O telégrafo e a injeção

terça-feira, 10 de março de 2015

Reavaliando minha educação na infância, consigo produzir casos muito interessantes e aplicáveis à escolha profissional e avaliação da aprendizagem.

O contexto para estes dois fatos envolve uma vila do interior fluminense, uma estação de estrada de ferro e um posto de saúde em plena década de 50.

Interessante que meu pai observava muito o futuro profissional. Pensava em atividades que o filho poderia desempenhar ao chegar aos dezoito anos. Trabalhando como agente de uma estação da estrada de ferro, gerenciando a agência, fazendo a contabilidade, despachando trens e mercadorias de um interior agropecuário, ensinou-me o alfabeto Morse e as habilidades que um telégrafo requer. 

Aos dez anos de idade consegui manejar o telégrafo da estação, conhecia os perigos das descargas elétricas em caso de tempestade, dava licença para os trens e emitia os telegramas. Meu pai imaginava que aos dezoito anos poderia ser funcionário da Estrada de Ferro Leopoldina como um telegrafista.

Rapidamente o tempo passou e acabei usando mais o Morse em atividades escoteiras que na estrada de ferro. Atingindo a idade própria para uma contratação, os telégrafos estavam sendo desativados e os trens, comandados por telefonia. Se me ativesse a esta meta, estaria desempregado antes de ser contratado. Pensamos, hoje, que muitas profissões podem acabar de uma hora para outra. Na verdade, muito cedo, aprendi que elas eram instáveis, embora nessa mesma época não acreditássemos que o ser humano chegasse à lua tão depressa!

Haveria ainda uma saída para a questão do emprego: fazer contabilidade no ensino médio e ingressar na estrada de ferro para seguir a mesma profissão do meu pai.

A vida, naquela época, demandava profissionais que não existiam. Não havia enfermeiros para aplicar injeções e, sim, práticos licenciados que manipulavam remédios, aplicavam injeções, embora nem todos conseguissem aferir a pressão arterial. Pois bem, aos dez anos de idade fui mandado ao posto de saúde procurar seu "Chiquinho”, o chefe do posto. Getulista de carteirinha, conservava o retrato do Getúlio na parede. Era atencioso e já me esperava. Apresentei-lhe o desejo de meu pai: que ele me ensinasse a aplicar injeção. Pensando neste caso, com o olhar do século XXI, o absurdo invade qualquer pensamento, sobretudo numa época em que as associações de médicos querem chamar a si qualquer invasão a ser feita no corpo humano. Mas, àquela época, alguém que soubesse aplicar injeção poderia salvar vidas e quase não havia profissionais para esse fim.

Seu "Chiquinho”, meu professor, ensinou-me a aplicar injeções usando um travesseiro dobrado. Fez comentários e certificou-se de que já sabia desinfetar a seringa. O material do aprendizado foi levado de casa: seringa, estojo e pequeno suporte. Na tampa do estojo colocávamos álcool, sobre ela o suporte e, mais acima o estojo com a seringa, agulha e água. Acendendo-se o fogo, a água fervia e desinfetava os objetos. Foi feita a verificação do que chamamos de conhecimento prévio. Importava, agora, manejar a seringa, cortar a ampola e dosar o peso e movimento das mãos para aplicar a injeção. Detalhes importantes foram observados pelo professor naquele posto de saúde: após a introdução da agulha no braço do paciente, devíamos puxar um pouco o êmbolo da seringa para ver se surgia sangue. Em caso positivo a aplicação deveria ser imediatamente suspensa.

Aprendi tudo isso aos dez anos de idade. À luz de nosso século seria um crime. Uma criança não deveria manejar seringas e nem pensar em aplicar injeções. A questão que justificava tudo isso era a necessidade. Numa época em que a sobrevivência dependia de quem sabia fazer, não importando a idade e, na falta de legislação específica, a sociedade dava graças a Deus quando alguém, mesmo criança, soubesse alguma coisa.

Todos os dias as técnicas eram repetidas para fixar o processo. Tudo foi incorporado à minha memória semântica e está muito vivo até hoje, quando este artigo é escrito. A cada dia o meu professor falava menos e observava mais. Restringia-se a pequenos comentários e ajustes. Por fim, informou-me que no dia seguinte faria uma prova final e me liberaria.

Não me senti pressionado com esta prova. Afinal era repetir tudo o que fazia. O procedimento não seria alterado, a não ser num ponto crucial. No dia da prova não havia travesseiro e, sim, o braço do senhor "Chiquinho”! O comentário dele ecoa em minha mente: — Eu preciso tomar uma injeção hoje. Como sei que você aprendeu, aplique-a em meu braço. Ao final, elogiou-me: — Você tem um jeito especial para aplicar injeções. Não senti dor alguma, você está aprovado.

Refletindo sobre esta prática, verifico que foram atendidos os requisitos da didática para uma boa aula, para a fixação da aprendizagem e para definir uma avaliação segura e sem ansiedade.

Concluo que, se os professores de hoje, ao avaliar os alunos forem capazes de "entregarem os braços” e servirem de "cobaias” é porque confiam profundamente naquilo que ensinaram.

E, como até hoje, tenho na lembrança a figura simpática do "Chiquinho” do posto e o reverencio, assim também os professores poderiam ser reverenciados pelos seus ex-alunos.

Tinha, portanto, duas profissões aos dez anos de idade. Uma delas acabou oito anos depois; a outra nunca exerci, porque a lei não permitiu. Mesmo sabendo fazer as duas coisas, aprendi que temos de estar aprendendo sempre porque as profissões mudam ou acabam.


Prof. Hamilton Werneck é pedagogo, escritor e palestrante


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Hamilton Werneck

Hamilton Werneck

Eis um homem que representa com exatidão o significado da palavra “mestre”. Pedagogo, palestrante e educador, Hamilton Werneck compartilha com os leitores de A VOZ DA SERRA, todas as quartas, sua vasta experiência com a Educação no Brasil.

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