O rabino que ensinava a ler

terça-feira, 21 de outubro de 2014

"Navegar é preciso, viver não é preciso” Fernando Pessoa.


Por alguns anos, refletindo os ensinamentos recebidos no ensino médio, tinha dúvidas sobre a expressão do poeta. Tal seria a necessidade das navegações para Portugal que viver não era o mais importante. Uma luz no caminho me fez ver que, na verdade, o que estava em jogo era a questão da precisão. Navegar exigiria sempre a precisão, daí a importância de excelentes navegantes; viver era uma forma muito mais livre e, por isso mesmo, menos precisa.

As escolas primam por desenvolver entre os alunos as análises literais dos textos, procuram desenvolver questões para que os alunos demonstrem tê-los compreendido. 

Certa feita, uma importante empresa encarregada de elaborar exames vestibulares usou um texto de Carlos Drummond de Andrade para ser interpretado. À época, um jornalista conseguiu entrevistar o Drummond e espantou-se quando o poeta informou que jamais pensara em responder, como corretas, as opções que estavam informadas no gabarito das provas. Quer dizer que o autor seria reprovado ao responder estas questões. Esta mesma empresa diante de fato tão contundente e quase desmoralizante tomou uma medida para as demais provas: questões de interpretação de texto deveriam estar contidas em escritos de autores já falecidos. Assim, nem no cemitério, os jornalistas conseguiriam uma entrevista.

Mas, se fôssemos usar as estratégias de um experiente rabino, teríamos outra visão dos textos porque os rabinos que se prezam fazem quatro leituras.

A primeira é uma análise literal daquilo que foi dito, pshat, em hebraico, típica das usadas pelas nossas escolas. No entanto, o rabino vai mais além. Num segundo passo, ele analisa o interdito, remez, em hebraico, analisando as metáforas que possam existir no texto, extraindo daí maior compreensão. O recôndito ou drash, em hebraico, corresponde a tudo o que vem junto com a reflexão sobre o texto, inclusive as circunstâncias de vida de quem o escreveu, o ambiente e o contexto. Por fim, o rabino, centra-se no sod, em hebraico, segredo, o não dito contido no texto e somente conseguirá retirar dele ensinamentos se conhecer bem o que este autor analisado já escreveu.

Assistindo a uma palestra do falecido amigo Rubem Alves, ouvi uma crítica às perguntas típicas de uma prova de língua portuguesa: o que o autor quis dizer? E Rubem afirmava que o autor não quer dizer, o autor diz! Na verdade, a ótica de Rubem é diferente deste rabino que faz quatro leituras, a questão é que as provas de língua portuguesa buscam uma interpretação, enquanto a leitura do rabino, diante das quatro situações da leitura e conforme o conhecimento que se tem do autor, permite outras descobertas mais profundas e até escondidas nos textos.

Fica o ensinamento de quem se embrenhou nas interpretações do Talmud: é necessário analisar o "dito, o inter-dito, o recôn-dito e o não dito”.

Em épocas de tantos textos em provas do Enem e divulgação dos resultados do Ideb seria muito bom buscar os ensinamentos do rabino que ensinava a ler!


Professor Hamilton Werneck é pedagogo, escritor e palestrante


TAGS:

Hamilton Werneck

Hamilton Werneck

Eis um homem que representa com exatidão o significado da palavra “mestre”. Pedagogo, palestrante e educador, Hamilton Werneck compartilha com os leitores de A VOZ DA SERRA, todas as quartas, sua vasta experiência com a Educação no Brasil.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.